quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-quinta noite – Gilberte, Não Te Conheço

Gilberte, não te conheço. Mas se te conhecesse [minha francesíssima Gilberte] eu seria Marcel [francês também, como já devidamente estabelecido acima]. Passearíamos ao luar [ou ao sol, melhor] depois da missa de domingo em algum caminho florido [tela de Renoir ou Monet] de certo senhor chamado [talvez] Swann, 1907 ou 8 no cabeçalho do jornal.

Adentraríamos um caminho de choupos [pois todo passeio paradisíaco Europa-de-antigamente tem choupos, e eu nem sei o que é isso] – tu com teu vestido de tantas frufrus e rendas que eu nem saberia onde estou, e eu a gravata meio-fraque a me estrangular.

À beira de um tranquilo lago [e como nos pôsteres há tranquilos lagos] tu me falarias de tua mãe Odette, a smart, e como ela falava inglês numa época em que quase ninguém. E eu te contaria três anedotas cuidadosamente selecionadas sobre a minha tia Leonie, que nunca sai da janela e conhece metade e meia da cidade. [Também não há muito a quem conhecer nesta cidade de Combray, que desconhece talvez a própria existência].

Isso, se fôssemos aquele Marcel e aquela Gilberte de Proust. Mas não o somos – e eu [não Marcel mas eu] usaria essa toalha de piquenique para forrar aquele gramado europeu [minha falsa Gilberte] e tu praticarias a nobre arte do hipismo [os frufrus e as sedas amontoados de lado] e poderíamos até contemplar o ápice do Monte Branco. Se estivéssemos de olhos abertos, minha brasileiríssima Gilberte [a qual conheço].

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-quarta noite – Explícitos, Tássia

Explícitos, Tássia. E claros e diretos. E toda uma coorte de adjetivos que só expressam uma total falta de carinho, ternura, paixão, decência e outras bobagens que inexistem neste quarto de iluminação branca de chapa e esta mesa na qual a ponho [Tássia] e na qual minhas mãos abarcarão [quase] suas coxas e as afastarão, cada um uma em hemisfério diferente.

Olho no olho, desconheceremos em sua completude o significado dessa estranha palavra amor [talvez a marca de algum novo brand de bebida energética]. Saberei, no entanto, o triângulo misto de poliamida e algodão semitransparente com pseudobordados de folha de parreira que lhe envolve – envolve muito pouco de você, de tão pequeno que é. Isso, claro, antes de se tornar o monte de farrapos no que eu [selvagem talvez] o transformei, a fazer companhia no solo à tua minissaia, a uma só feita branca e nada decente.


E suas mãos me empurrarão [sem ternas carícias ou juras eternas] contra a parede, e os sapatos, meias, jeans e o resto se farão companhia no chão, e serei cola na parede [você será algum cartaz dadaísta ou de show de música eletrônica, e a parede será a parede] – eu no meio, recheio de sanduíche, e entre nós dois não haverá segredos [Tássia], não por conjunção de almas ou por algum diálogo respeitoso e adulto, mas porque não existirão mais panos ou botões a nos separar, e por que haveria.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-terceira noite – Olívia, Sou John

Olívia Newton-John, serei o teu John, o Travolta. Serás de qualquer lugar: Olívias havia em London, Buenos Aires e Itaiçaba.

Compraremos Long-plays de Miss Lene e das Frenéticas, tomaremos sorvete de maracujá com baunilha [os tempos eram mais inocentes, ou não], e não despregarei olhos dos teus pés [talvez por alguma patológica fixação – e também para conseguir não rir de tuas ridículas meias dancing days de camadas de cor estridentes com fios douradinhos].

Iremos a um Mingau-pop no fim da tarde [sim, podem desterrar-me ao planeta Saturno mas o nome era esse mesmo] e os tempos não eram melhores [Olívia]. Os tempos eram [em verdade] muito chatos – apesar dos poucos carros [que nós achávamos que eram muitos] e da possibilidade de voltar à meia-noite sem colapsar de medo.

Ou os tempos eram interessantes – chatos éramos nós [Olívia e John] que não éramos o que éramos. Ou éramos – mas não fazíamos o que devíamos fazer.

E o que devíamos: em primeiro lugar, meditar sobre a implausibilidade de um futuro e a diminuta sabedoria de se viver em função dele.

E em segundo lugar, eu deveria ter te apoiado numa mesa [com cada mão a envolver uma dancing days], e afastado as duas meias o mais que possível uma outra [com teus tornozelos dentro] – e a calça cocota de barra baixíssima já previamente dobrada ao lado a esperar. Uma membrana de borracha nos livraria de consequências aborrecidas e seríamos Olívia e John.

 Mas éramos chatos [Olívia, do teu John], ou talvez os tempos é que fossem, mesmo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-segunda noite – Arrasaremos em baile Funk

Funkeira Tássia, arrasaremos em baile Funk. [Serás MC Tássia pois toda funkeira tem iniciais]. E eu serei MC Marcão, Paulão ou Ricão – e essa tempestade de aumentativos não dirá respeito à enormidade dos meus conhecimentos de álgebra ou epistemologia. Vulgar sem dúvida mas seremos vulgares [Tássia] – tanto quanto o meião rede de pescador e as botas cano longo vermelho-sangue de plástico que usarás além do microshort, e o meu jeans apertadíssimo a multiplicar cada saliência abaixo dele.

Para lá do para lá, curva-faz-o-vento, iremos ao galpão – pleno de tchutchucas, tigrões, bondes e demais nomenclaturas inacessíveis aos não-iniciados. Faremos dança [malfeita, mas quem se importa com os esmeros da arte coreográfica?]. E não será bem dança – serás sol [ou Planeta Júpiter talvez] e eu uma de suas luas – tu te baixarás até o rés do chão a sacudir mesmo o microbustiê e o pingente agarrado ao inevitável piercing no umbigo. Eu [a mandatória camiseta regata a salientar os bíceps e tríceps] piruetarei em tua volta e tentarei por seis vezes colar lábios-em-lábios – e tu me empurrarás dizendo que os três ou dezenove anteriores eram muito melhores, e cada insulto me fará quedar mais perto.

E na sétima vez [no previsível beco-lá-atrás] serei papel colado na parede e serás papel também, entre eu e o reboco. Explorarei a marca da tua lingerie e borrarei o batom gloss brilhento-púrpura. E tua mão se declarará inextricável inimiga do meu zíper.


Arrasaremos [Funkeira Tássia] em baile Funk.

Centésima-octogésima-primeira noite – Musa de Kpop

Musa de Kpop, tu te chamarás Yura, Hwang ou Jihae – sorriso de plástico, cintura fina ao infinitésimo, pele lisíssima a rivalizar com a neve de alguma montanha na fronteira com a Manchúria e, [já que estamos a falar de montanhas], com a barra de tua microssaia tão alta quanto o Everest, que não é perto mas fica na Ásia.

E eu serei Jeon, Park ou Kim, que importa [e que original].

Tu [Musa de Kpop] dançarás num palco cruzado por refletores e cenário alvíssimo ao lado das outras e ninguém se lembrará de que a música é eletrônica e a letra faz menos sentido que um canguru cor-de-rosa [Toda a Filosofia do Kpop se resume em Eu sou linda, tem muito carinha atrás de mim, você vai ter que me conquistar – diria Confúcio, e Confúcio nem era coreano]. A cada shot a edição do Music Video te fará mudar de roupa – e aparecerás azul, amarela ou vermelho-brilho-acrílico. Mudarás de posição a ocupar os espaços do palco a lembrar dos gritos do coreógrafo no ensaio. E nos intervalos dará 437 autógrafos e contarás cada meia caloria de cada meia folha de alface.

E no meu palco [no nosso palco – porta trancada, janela à meia-luz] faremos dupla a nos afastar e enroscar olho, lábios e tudo e a altura de tua saia não fará diferença [aliás não haverá saia].


E tu te chamarás Yura ou Jihae, e eu Jeon ou Kim, e quem se importa.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Centésima-octogésima noite – Por duzentas e trinta e nove noites

Por duzentas e trinta e nove noites possuiu-me Manoela – ela Imperatriz e eu escravo, ela Comandante de Nave Espacial e eu grumete novato, ela Proprietária de franquia de sucos naturais e eu estagiário tímido. Poucas dúvidas havia [e além da retórica, não havia nenhuma] sobre quem detinha a posição superior em todos os sentidos da expressão.

Macacão prateado de ficção científica classe B, tailleur verde-forte de executiva, uniforme de oficiala da Cortina de Ferro em filme de James Bond, Manoela vestiu muitas roupas [e despiu mais ainda] antes de se aproximar – as mesmas que eu [estagiário ou grumete] só tirava sob suas ordens – eu a morder os lábios de timidez.

E Manoela impregnou-me de ordens, e me fez fechar os olhos [ou abri-los ao máximo], vestiu-me de Tarzan ou de ternos iguaizinhos aos de John Kennedy – isso, pouco antes de tirá-los peça por peça, e depois de uma peça teatral particular [da qual era a diretoria, produtora e público] mandar-me fechar a porta com cuidado ao sair. Uma Diretora e Roteirista que se esmerara em deletar as palavras respeito, decência e pureza além de seus equivalentes sinonímicos da nossa vida, da tal nave ou da loja de sucos.

Por duzentas e trinta e nove noites possuiu-me Manoela, ela Imperatriz e eu escravo. E hoje é a ducentésima-trigésima-nona noite.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-nona noite – Perdidos Sem Espaço

Eu seria então estadunidense, piloto da Força Aérea Americana, deslocado para serviço em naves espaciais. [Terei nascido em Cincinnati ou no Brooklin mas meu destino levar-me-ia bem longe]. Exibirei cabelo preto, figura esguia, habilidades para manejar jatos hiperatômicos e tomarei como função levar uma família para a galáxia de Alfa Centauro. Em outras palavras eu seria o Major Don West. E tu serias Judy Robinson – cabelos de ouro e olhos azulíssimos a contrastar com irmãos e pais com os quais não pareces ter nada em comum.

Passearíamos por algum planeta perdido [essa família sempre se mete em algum planeta perdido] e [distraidamente de propósito] nós nos desviaríamos por detrás de algumas daquelas pedras obviamente de papelão – a única forma de nos livramos daquele robô boboca e daquele menino Will de voz gasguita, sem falar naquele chato falso Doutor que sempre se mete em encrenca].

E então [Judy] a trinta mil anos-luz de distância tu me empurrarás contra alguma árvore de plástico, tirarás a trança de ouro e o semblante de boa moça do caminho e com as duas mãos abrirás o macacão prateado – a mostrar-me aquela firmeza total e enigmática debaixo dele – o qual logo se amontoará inteiro ao chão, mal coberto pela minha roupa igual. E me empurrarás [Judy Robinson] contra alguma rocha mal construída e mesmo no sideral espaço serás louríssima amazona.


Antes que anunciem o episódio da semana seguinte.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-oitava noite – História Noir

Serei Christopher Marlowe ou Sam Spade [Private Eye  - Detetive Particular] e tu [Tássia] serás Tássia – um nome exótico, alatinado, perfeita para uma Hollywood Film Noir [Los Angeles em 1944 pela janela de meu escritório].

Tu [Femme Fatale] te sentarás na beira da minha escrivaninha, o vestido tubo preto apertadíssimo sem alça [minha secretária a morder os lábios de ciúme na sala contígua], e me contarás histórias de algum irmão sumido chantageado por uma quadrilha sobre um colar de esmeraldas perdido do tempo dos faraós herdado de uma velha tia. E eu [chapéu de feltro na mão e sorriso de Humphrey Bogart cópia xerox] perceberei que é tudo cascata – o irmão é um ex-marido, o colar foi roubado, tu és a verdadeira chefe da quadrilha e não me surpreenderia se houvesse uma Smith & Wesson calibre 36 ao lado do teu Chanel n. 5 dentro dessa bolsa violeta.

Eu pedirei pagamento muito especial em adiantamento e antes que tu tires duzentos dólares da bolsa eu apertarei o vestido tubo e o conteúdo dentro dele entre minhas mãos e os lábios nos teus [os teus com o inevitável batom paixão-sangue]. E minhas mãos levantarão o tecido negro e mostrarão a cinta-liga [toda mulher fatal usa cinta-liga] e te apoiarei na escrivaninha, farei voar meu chapéu e te livrarei dos saltos-altos, do broche nos cabelos e de todo o mais.

E Humphrey Bogart [a comer pipocas a ver nós dois em algum cinema lá no Céu] tirará mais uma baforada no cigarro. E se roerá de inveja.

Centésima-septuagésima-sétima noite – Vivamos, Minha Querida, E Amemos

Vivamos, minha querida [Tássia], e amemos, e as censuras desses velhos tão severos não valham para nós um só centavo. A Roma Antiga ou a São Paulo de hoje empanturram-nos de tédio [sem clorofórmio nem vinho do Lácio para contrabalançar], e empurram-nos para longe. Tomarei um volume dos poemas de Catulo [terei prazer em te ver fazendo tua mala] e sumiremos para longe – a Lusitânia talvez, ou lugar nenhum.

Tomaremos uma galera no porto de Salerno [ou um voo da TAP, que importa] e desde que ponhamos os pés no túnel do Aeroporto [ou na primeira pedra da Via Appia] tu serás minha, como nunca.
Já existiu outra Tássia [minha cara] e tinha nome parecido. Era casada, e não com Catulo, e o pobre poeta roía os dedos de ciúme – e com os mesmos dedos tomava os pergaminhos e a ela escrevia poemas de amor e algo mais.

Os mesmos poemas que reescreverei [minha cara] não em pergaminhos mas em teu corpo, em alguma meia-noite de um hotel da franquia Quality Inn ou estalagem na Provincia Narbonensis.

E esse poema a quatro mãos [as tuas e as minhas] nós o escreveremos direto, inverso, de posição trocada, e mais uma vez. Tu alpinista subirás a montanha, completamente no seu auge, e a montanha serei eu.

Vivamos, minha querida, e amemos, e as censuras desses velhos tão severos não valham para nós um só centavo. E esse verso escreveu-o Catulo – ele escreveu e nós o viveremos. Pois São Paulo ou Roma Antiga nos enchem de tédio, e fugiremos para a Lusitânia talvez, ou para lugar nenhum.


Obs: queria fazer uma coletânea de textos eróticos – mas noto que estão cada vez menos. Enfim...

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-sexta noite – O Duplo Ernesto

La Verdadera Vida de Ernesto Guevara [Buenos, Aires, 1976 ou 1977] nunca chegou a existir. Ou quase – a Ditadura Argentina inexplicavelmente mandou queimar os setecentos exemplares alegadamente impressos dessa brochura de qualidade duvidosa – inexplicavelmente pois se tratava de obra radicalmente de direita. Dela só restaram pedaços, publicados no suplemento literário do La Nación nos quatro domingos do agosto de 2005.

De fato tal obra [inicialmente atribuída a Borges, depois a Bioy, e posteriormente a ninguém, sendo ninguém um autor ou autora no anonimato] ganhou um lugar – [modesto, vá] no já modesto Panteão da literatura erótica.

O enredo começa com um jovem Guevara dobrando à direita na calle Mendoza em uma noite de novembro de 1946. [Na verdade dobrou à esquerda, topou com uma livraria de traduções de livros de revolução e o resto todos sabem].

O verdadeiro Ernesto [segundo o livro] encontrou um amigo, este o levou a conhecer umas moças mui libres, e o garoto de dezoito anos extasiou-se pelo amor carnal e não mais parou. As descrições de festinhas sem muita roupa, a dois, a três, a trinta, chegam a ser monótonas de tão recorrentes.

Curioso que os dois Ches morreram cedo, o Che do livro mais cedo ainda, com 38 [o outro teve um ano a mais].

A única vantagem [pelo menos segundo o reacionário autor ou autora] é que, ocupado em tirar sutiãs, o Che do livro não pensava em revoluções.

domingo, 12 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-quinta noite – Rousseau Narciso

Jean-Jacques Rousseau apaixonou-se por sua prima [na verdade pelas duas primas] em um lugar chamado Bossey [meia dúzia de casas que Deus esqueceu ou que na verdade nunca soube que existia] em alguma tarde de 1720 ou 21, mais tardar. Tinha oito anos e as primas seus doze ou treze, e o futuro filósofo, educador, memorialista etc. [que nunca considerou nenhum desses louvores mundanos mais importante que suas paixões] narrou como as mocinhas se aproximavam dele, braço a roçar no braço, a lhe ler histórias.

Foram os primeiros avatares de jovens e mulheres que lhe atravessaram a vida – e quem lê suas memórias se ataranta ao ver o quão pouco Aristóteles e Agostinho importavam pouco para a vida de Jean-Jacques. [Um beijo lhe valia muito mais que qualquer paixão do intelecto.] A loura Madame de Warens acolheu-o como filho e algo mais – uma paixão esquisita por ela ser mais velha e por ser paixão dividida com outro – em uma forma setecentista de Ménage à trois.

De nobres a serviçais, as paixões do filósofo [a maior parte das quais imaginária] cobriam todos os extratos sócias, em protótipo carnal de democracia. Pulava de uma a outra como quem passeava pelas matas do Ródano [outra paixão sua].

O Grande Amor de Jean-Jacques Rousseau foi Jean-Jacques Rousseau. Essa frase [dita por ninguém] explica muito, ou tudo. Quando uma garota entendeu isso, ele teve filhos com ela [não se casou, pois querer isso era exigir demais do doce Narciso de Genebra].

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-quarta noite – Dante e Beatriz Antimatéria

A mais bela das Histórias de Amor consiste também [e talvez] na mais sem graça.

O enredo é conhecido: a flor da linhagem dos Portinari encontrou a epítome da família Alighieri. Era Florença no século XIV e as inevitáveis cismas de família obrigaram a jovem [15 anos] Beatrice Portinari a ver o amado e jovem Dante Alighieri na igreja entre a casa dos dois. Ver, literalmente – um namorico de olhares por cima de missais debaixo da vigia de aias.

Ele obrigado a se exilar, pela eterna política. Ela obrigada a casar-se pela não menos eterna economia. Com um homem velho, feio, etc. Cai doente. Um mês depois morre. Ele recebe as terríveis notícias. Muitos anos depois escreve a Divina Comédia, colocando-a como uma das Virgens do Paraíso, eternamente acompanhando nossa senhora.

Tão nobre e pura história desconvida a qualquer tentativa de escrever uma versão mais picante.

Uma Beatriz e Dante versão adulta só poderia existir em um mundo antimatéria, daqueles de seriados dos anos 60, no qual os mesmos atores representavam o seu oposto, apenas com roupas de cores inversas.

Hippies do ano 1300, uma Beatriz antimatéria puxaria um Dante idem para vagarem pedindo carona [em carroças, claro] pelos morros do Norte da Itália, onde copulariam como bichos – em matas cheias deles por sinal, nessa época de pouca destruição ecológica.

O único problema é que talvez Dante preferisse fazer coisas mais divertidas a escrever a Divina Comédia. O mundo consideraria isso uma grande perda. O jovem casal talvez não.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-terceira noite – Teu escravo

Brinquemos [minha cara Tássia] ou não: levemo-nos [muito a sério]. E na nossa brincadeira [que não o é] tu serás Cleópatra, e eu teu escravo. Não, nada de Cleópatra. Não toleraria pensar em Júlio César e Marco Antônio e te dar beijos [e mesmo escravo terei ciúmes].

Melhor: princesa chinesa [sobrinha-neta de Confúcio, que o velhinho previu que faria muitas sapequices na vida] mas não. Digamos, jovem Rainha de algum reino na beira do lago Balkash lá pelo século XIV.

Tédio e devassidão, como toda jovem Rainha que se preze, e eu [sem nenhuma originalidade na história] serei seu escravo: alto a roçar na porta da alcova imperial, os tríceps e peitorais a saltar, pele de tigre a fazer de tanga.

E tu me rodearás a contemplar cada detalhe do teu objeto [serei teu objeto, lembra? Teu escravo]. E a falta do que fazer te fará ter ideias de como se distrair nessa noite [nas noites antes do Netflix, que convidavam a devassas distrações].

Tu farás voar a lembrança do pobre tigre [e ninguém contém as mãos de uma Rainha]. E como toda soberana, no fundo pensarás apenas no tamanho dos seus domínios.

E então serei inteiramente sua posse – posse inteira, que não espera a dona dar ordens: os peitorais e outros músculos servirão para te eliminar qualquer tecido supérfluo e te erguer mais alto que qualquer outra mortal [Imperatriz que serás] e te colocar com firmeza e cuidado no teu trono.

E seremos escravo e Rainha [minha cara Tássia] e os livros de história não lembrarão de nós.

domingo, 5 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-segunda noite – Coração Profundo, o Pornô Da Existência

Coração Profundo teve sua estreia mundial em três cinemas poeirentos nos subúrbios oeste da cidade de Washington no dia 7 de agosto de 1971. Poeirentos e segundo alguns, pulguentos – o que seria bem coerente com a trajetória cinematográfica de um filme pornô segundo a turma dos que insistem em considerar a Sétima como uma forma de Arte, sem esquecer uma ponta de moralismo.

A Obra de Arte Independe da Minha Vontade – essa frase [de erotismo zero] abria o filme, projetada na tela por nove longos segundos, e seguida [e nisso o filme não decepcionou sua plateia esperável] de cenas de uma jovem loura sem problemas com  frio [pois usava muito poucas vestimentas, e geralmente nenhuma] em agradável companhia [ao menos para os participantes] de musculosos rapazes igualmente sem muito gasto com pano, e a posterior vinda de outras moças, algumas morenas, outras nem tanto, etc.

A obra causou a reação habitual da época a filmes excessivamente realistas. A defesa do seu diretor [através de pseudônimo] é que não pretendia agradar – e sim mostrar o que achava que devia ser mostrado. Que o cinema, nem a Arte, existiam para agradar quem quer que fosse nem reforçar as crenças de ninguém. As cenas lá estavam, as moças e rapazes também. Que cada espectador fizesse o que quisesse, com as cenas ou com sua vida.

Essa tentativa de rodar um pornô existencial foi compreensivelmente rejeitada e o filme recebeu carimbo vermelho da censura.

sábado, 4 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-primeira noite – Os Amores de Margarita

Os Pérfidos Amores de Margarita nunca foram escritos. De fato este romance biográfico [que não era um romance e não chegava a ser exatamente biográfico] não passava de um projeto de roteiro, a ser filmado no último bimestre de 1949 mas que na verdade nunca chegou a sê-lo, por arrependimento daquele que nunca chegou a ser seu diretor.

O roteiro [acusado não inteiramente sem razão de transparecer alguma incoerência e mágoa] começava na inocente infância de uma inocente menina chamada Margarita [e ênfase talvez exagerada na inocência se torna explicável pelo que veio depois].

Na segunda parte, Margarita tornara-se mulher. E que mulher – alta, cabelos louros pintados [e uma testa alargada à base de dolorosos tratamentos], e aquele olhar de Seduziria-até-o-Todo-Poderoso-se-quisesse.

E seduziu não o autor do Mundo mas um autor de filmes tímido baixote e gordote. Casaram-se, todos os big-shots de Hollywood como padrinhos.

O momento picante do roteiro começava com a viagem do tal tímido e gordote para o Ceará ou para o País Basco, atrás de experiências que ninguém teria. E Margarita [já reduzida a Rita] tirava o vestido para um e o sutiã para outro, às vezes para dois ao mesmo tempo. Ou três.

Obviamente destinado a mostrá-la como ser cruel e o marido como pobre vítima, o filme nunca chegou a ser completado. O marido [agora ex] e diretor achou demais para seu coração.

E Rita Hayworth e Orson Welles nunca mais se viram.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima noite – Darío, Manoela, e mais nada

Rubén Darío encontrou Manoela [pouco mais dela sabemos que seu nome, ou talvez nem isso] em uma tépida tarde num quintal em Manágua, em algum dia lá pelo final do século XIX – os dois eram vizinhos]. Parentes os flagraram e se escandalizaram [mãos nas bocas e olhos a esbugalhar] e além desse fato [obviamente com testemunhas] pouco se sabe o que fizeram antes.

Talvez Rubén tivesse demorado léguas para abrir a boca [era tímido e temia dizer alguma frase sem eufonia]. E talvez [a especulação é plausível] Manoela tomasse a iniciativa [pois era expansiva].

E lhe falou [a mulher] de todos os picos de montanhas que gostaria e subir e dos lagos em que sonhava navegar, deste os do Norte da Itália até os encravados nas cordilheiras do Quirguistão. E depois confessou as épocas em que gostaria de ter vivido [desde um previsível Antigo Regime antes da Revolução Francesa, até uma pouco esperável época futura, em um momento em que as verduras pulariam sozinhas da terra para os pratos e no qual as pessoas seriam andróginas].

Quanto a Rubén, decorou cada uma das falas dela [serviriam de inspiração para seus livros]. Quando abriu a boca, disse Sonho com uma poesia acrática, sem regras.

Os parentes os encontraram sem nada e abraçados. Surpreenderam-se. Pareciam não saber que estavam assim.