sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Centésima-quadragésima-segunda noite – Casal sem graça

Os textos eróticos sempre empurram vinhos chateau alguma coisa, charutos, de preferência algum iate com um romanticíssimo glacial suíço pela janela do hotel. Ou então alguma praia imitando cartão postal de Punta Cana. Junte-se a isso cintas-ligas, um smocking, muita tranquilidade e desnecessidade de trabalhar – smocking e cintas inevitavelmente empilhadas em algum canto no momento H.

Neste momento decido [minha caríssima leitora e meu caríssimo leitor] democratizar a vontade de fazer aquilo.

Penso em um casal sem graça. E o mundo é pleno de casais sem graça. Que tal um mineiro de carvão nas montanhas da Manchúria e sua esposa consertadora de tratores? Ou algum caçador nas planícies do Zimbabwe e sua jovem mulher plantadora de inhames? [E ainda falam em estereótipos].

Decido por um lenhador no norte da Rússia e sua esposa que trabalha como secretária na creche da cooperativa. Natacha tem uns quilos a mais e uma timidez que até a criançada nota, Ivanov é baixo e penou para conseguir o diploma passar na escola média. As palavras que trocam no final da tarde são raras e nelas o tempo e uma outra notícia de família enchem o buraco do silêncio.

Seguem ritual, cujo ponto de partida ocorre ao se cobrirem com o cobertor de penas de ganso da Moldávia. Ivanov não fala nem beija: afasta as coxas de Natacha [as mãos acostumadas a empurrar toras de pinheiro] e Natacha finge-se surpresa. Ivanov mergulha inteiro e emerge também, com delicadeza de motoserra. Natacha dá um par de gritos. Ivanov não beija, sequer sabe dizer eu-te-amo. Ronca em um prazo máximo de cinco minutos.

Natacha ajeita o cabelo como pode e sonha com dois anjinhos a voar. Nunca entendeu por quê.

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