terça-feira, 31 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-nona noite – O Mundo seremos nós

E não restará mais ninguém nesse mundo senão nós dois [minha quase solitária Tássia, e o mundo será o planeta, a proverbial ilha deserta ou esse quarto. E nesse mundo [que seremos nós e que será nosso] não existirá a palavra decência [em nenhum dicionário, e aliás os dicionários também não existirão].

Assim como seus sinônimos pureza, virgindade, castidade, respeito e pudor – todos serão empacotados e atirados em algum armário poeirento do qual ninguém se lembrará da chave. E seremos animais [minha mais que felina Tássia] – ou não o seremos – bichos não amam direito, nem fisicamente – querem só a eternidade da sua espécie. E nós [minha e/tenra Tássia] queremos a indecência eterna – a mesma indecência que não existirá, pois tudo será como é. E trocaremos de posição, e voltaremos à anterior, e inexistirá qualquer pedaço de nós dois [corpos ou almas, qual a diferença?] que deixe de ser explorado.

Não descansaremos – tomaremos alguns momentos [importa seu tamanho? Segundos, sécilos?] para acumular mais [como a represa antes de romper de tanta água] e voltaremos ao que nunca deixamos de fazer.

E o mundo não existirá, minha cara Tássia – ou existirá, e seremos nós, e o inexistir da palavra decência.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-oitava noite – O Filósofo encontra o Anjo

O Diabo visitou George Frederico Guilherme na calçada próxima à janela do quarto de sua irmã a 25 de março talvez em 1785 ou 1786 [esse dia, aparentemente inexpressivo, marca nove meses para o nascimento de Cristo, e tal (possível) coincidência não deixou de ter seus intérpretes]. E o visitou em forma de mulher [na verdade de uma jovem, para combinar com a idade dele – então mal saído da adolescência]. Mulher bela [óbvio – o Inimigo é mau mas não burro].

O garoto [voltava da biblioteca] deixou a pilha de livros de gramática [o futuro Inimigo do gênero humano (segundo críticos conservadores) ainda não pensava em dialética, o Poder ou Napoleão (que seriam suas três obsessões futuras)]. A garota [na verdade o Diabo] inventou qualquer nome [Liz ou Helga, ninguém soube direito] e o chamou a sentar-se ao jardim [era noite em Stuttgart].

George pode ter pensado em rasgar-lhe o sutiã, beijar-lhe um bico enquanto acariciava o outro e em fazê-la mulher ali mesmo. Pode ter, embora [segundo alguns, que não adiantam uma razão precisa] pouco provável. Igualmente pouco provável era que tenha discutido sobre a sua ciência da história [ele ainda não a tinha].

O idílio [dizem] encerrou-o sua irmã, que acordara, e o puxou para dentro. E que era ciumenta dele.

De qualquer forma [diz quem o detesta] a garota não era o Diabo. Era um anjo. Diabo foi quem fez com que George Frederico Guilherme Hegel tenha desistido do Amor para fazer filosofia e plantar Revoluções.

sábado, 28 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-sétima noite – Os Amores da Falsa Marlene

Cada dia sem você é solitário e triste estreou em um cinema na rua Wichmanstrasse [não dos melhores da velha Berlim] no dia primeiro de janeiro de 1919 e dificilmente se poderia imaginar pior timing e pior local.

Aparentemente tratava-se de estreia adequadíssima. Jeder Tag ohne dich ist einsam und leer [sendo este o título original] até pelo nome parecia rimar com os tempos – a guerra perdida, a inflação a mostrar os dentes. O filme [no entanto] ao longo de seus poucos sessenta e dois minutos nada tinha da melancolia do seu nome  dos tempos.

O filme se inspira [ou plagia mesmo] o Retrato de Dorian Grey, e conga a história de Lenny, bibliotecária da Escola Média de da cidade de Braunschweig que pintara um retrato de si mesma no dia em que decidira se manter eternamente pura e dedicar sua vida ao pó dos livros. Inevitavelmente o filme se centra não na vida de Lenny mas do seu quadro, a mostrar os amores da jovem mulher, amores dois, a quatro, a um, a uma, de todas as imagináveis maneiras [as cenas da vida de bibliotecária compreensivelmente não atraíram tanto interesse]. Desnecessário dizer que o filme foi censurado antes de três dias.

Uma fantasiosa versão afirma que Lenny era uma alusão a uma jovem Marlene Dietrich – que seria a atriz do filme. O que explicaria o sumiço das fitas, pois ela [depois de célebre] as terá mandado comprar todas. A essa explicação se contrapõe outra, de que o filme era bobo mesmo e por isso ninguém se deu ao trabalho de preservá-lo.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-sexta noite – Eva, Buenos Aires à meia luz

E a voz de Carlos Gardel o abandonou pela uma hora e trinta da manhã de 13 de março de 1920 no palco do Café Belgrano, na esquina da Florida com Nove de Julho, e ninguém sabe quem anotou os detalhes com tanta precisão [talvez algum bacana que trocasse o dia pela noite e viciado em apostas de boxe no Luna Park]. Carlos cantava o terceiro tango da noite, uma versão adulterada e letrada de La Cumparsita e a nota Fá Maior se recusou a sair.

A plateia não o vaiou [não porque não merecesse mas por puro constrangimento] o que tornou o silêncio ainda mais pesado. Saiu à rua decidido a se tornar contador ou comerciante de peixe.

Foi então que ela lhe pediu um cigarro. A borda de seu vestido tinha plumas, usava cabelo curto e uma piteira [afinal era Buenos Aires, de madrugada, nos anos 20]. Ele lhe perguntou seu nome, ela disse que escolhesse um – e Carlos a denominou Eva, depois Evita – nada a ver com a futura ídola de três décadas depois mas a coincidência não deixa de ter seus especuladores.

Evita levou Carlos à calle Corrientes, 348, segundo piso. Ela tocou um tango na vitrola e tirou o arranjo do cabelo. Foi a primeira coisa que ela tirou, das muitas, e ao final restou, diante de Carlos, apenas Evita e seu delicado perfume de rosas, talvez um gelatti.

Anos depois Gardel cantaria aquele momento à meia-luz. A única diferença para a letra da canção é que havia mesmo um gato. Que dormiu por todo o momento, felizmente.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-quinta noite – Pegar-te-ei de quatro, de oito, de quanto mais

Seremos livres [minha cara Tássia] como talvez nunca o sejamos [livres como quem não existe]. Seremos gigolô e protegida em alguma casa de proto-jazz em Nova Orleans em 1919, ou, hoje mesmo, casalzinho tímido de colegas universitários – tímido só até agora.

Melhor – seremos livres e tomaremos carona a rolar pela Europa – não a Torre Eiffel e outras obviedades. Pararemos em Budapeste ou na capital da Letônia e a falta de dinheiro [ou a vontade de aparecer, ou ambos] nos fará oferecer nossos serviços a uma boate underground de náuseas – dessas típicas de Hollywood, sem classe mas com todo mundo bonito e com o dono a falar inglês perfeito.

E faremos [minha cara Tássia, duas da manhã e plateia lotada de caras e louras] o nosso espetáculo, sem temores de quem o suba ao Youtube [não existiremos, lembra? E quem não existe não tem reputações a defender].

No palco [nossas roupas lá no chão após strip a dois] eu te apanharei de quatro, de oito, de onze, de quanto mais, de todas as formas [minha versatilíssima Tássia] nenhuma delas decente, e te dobrarei em todas as curvas de que teu corpo curvilíneo é capaz. Ajoelhar-me-ei na tua frente em confissão, enquanto tu em pé de olhos fechados mirarás o teto de luz escarlate e enterrarás tuas mãos em meus cabelos em sinal de absolvição.

E ao final nos curvaremos aos aplausos e recolheremos os jeans e sairemos dando beijinhos. Para pegar carona no dia seguinte a outra cidade na qual seremos igualmente livres, minha cara Tássia.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-quarta noite – As Diabinhas de Lutero

Luther und die kleine Teufelchen [que pode ser traduzido de maneira razoavelmente precisa porém não menos ridícula como Lutero e as diabinhas] previsivelmente não foi o mais brilhante de todos os panfletos que a Santa Igreja [e seus bajuladores] lançaram contra o monge alemão nos dias que se seguram à pregação de suas 95 Teses contra a Venda de Indulgências em uma Igreja de Wittenberg a 31 de outubro de 1517. Tratou-se porém [e compreensivelmente] de um dos mais populares, até que o moralismo o relegou aos Infernos das bibliotecas [sendo eles as estantes especiais na qual se estocavam os livros indecentes], de onde o grande escritor Apollinaire [também pesquisador do Inferno da Biblioteca de Paris] o resgatou quatro séculos depois.

O panfleto [que tanto tem se sensual quanto de ridículo] retrata [sem novidade nenhuma] que Lutero fora desencaminhado pelo Inimigo para fazer o mal. Este porém [e também sem se esmerar na originalidade] enviou anjinhas caídas [ele próprio sendo um anjo caído, recorde-se] para desencaminhar o até então bom católico do caminho reto e acertado.

A parte cômica do livro [que deveria ser a parte erótica] mostra as garotas a cercar o monge e a trabalhar avidamente com suas bocas e mãos. Isso, a se somar ao fato de que o gordinho Lutero nunca fora exatamente um modelo de beleza, cercou a obra de grande peculiaridade.

E também fez com que Apollinaire a classificasse como livro cômico.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-terceira noite – Antígona, a não-erótica

Na Tragédia grega ninguém faz nada – ou, nada de mais êxtase. Há sangue, punhaladas, olhos arrancados, esfinges que falam (e pior, falam frases idiotas que o dramaturgo e o expectador insistem em levar a sério) mas nada mais. Nada mais de suspiros, palavras in decentes e olhos revirados – que Ésquilo parecia desconhecer que existiam, porém sem as quais não existiria a própria Tragédia, pois sem gente não há Tragédia, e sem essas coisas não haveria gente.

Nem Eurípedes nem Sófocles nem ninguém pensou nas aventuras possivelmente mais livres de uma Jocasta madura porém com o tempero da experiência. Lisístatra talvez – ela dificilmente seria aceita em um convento católico – o que se resume a questão meramente teórica, pois na época inexistiam os conventos católicos. E além disso, Lisístatra é estrela de comédia – o que foge do escopo.

O grande desafio [que nem mesmo a trinca de dramaturgos gregos aceitou encarar] seria transformar uma adolescente da cidade de Tebas filha da melhor família em uma deusa do prazer. Em outras palavras, fazer de Antígona um personagem erótico.

Ou ao menos fazer com que a garota largasse essa sua obsessão com cemitérios, enterros, pais cegos e irmãos mortos e visse que a vida existe e que pode dar muito prazer a dois.

De Ésquilo só sobraram sete tragédias, dos outros não muito mais. Imagine-se uma em que um guapo mancebo levaria Antígona e conseguiria lhe tirar a túnica. Algo pouco provável pois a cara de tragédia grega da moça quebraria o clima.

domingo, 22 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-segunda noite – O Pior Filme Erótico

Ed Wood gravou nas três últimas semanas de 1950 [em um galpão enferrujado no subúrbio oeste de Newark] as trinta ou trinta e uma [nunca se soube ao certo] cenas de um filme licencioso [e essa qualificação pudica se deve ao próprio Ed Wood, o qual, contrariamente ao que diz a fama, era um tanto pudico].

A obra [se é que se pode chamar de obra a um filme do alegado pior cineasta do mundo] ocupou sete rolos de celuloide e somente alguns poucos sortudos [se é que se pode chamar de sortudo a quem o viu] puderam apreciá-lo antes de sumir nas estantes da Comissão pela Decência [a mesma que por décadas regeu os filmes de Hollywood e que se tornou célebre por proibir umbigos].

Influenciado por seus clássicos-ao-inverso de ficção científica [ao inverso por serem exemplos de filmes ruins] a filmagem de Ed Wood [a qual permaneceu sem nome] tinha como protagonista uma venusiana [um tanto ridiculamente] denominada de Vênus, a qual [junto com suas e seus comparsas de planeta] tinha como objetivo a conquista do Planeta Terra através da sedução carnal aos líderes e cidadãos e cidadãs proeminentes do mundo. Como uma criatura verde [que ao tirar o sutiã verde mostrava os seios verdes] poderia seduzir alguém, o filme silencia.

De qualquer forma acha-se que a verba foi cortada não por pudor, mas por insinuar que os líderes podiam ser seduzidos de forma tão reles. O que não deixou de ser um motivo político.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-primeira noite – Antônio Frederico e Leonídia em alguma alcova no Pelourinho

Da obra duplamente mal denominada Os Amores Secretos de Leonídia somente um exemplar [em estado deplorável] se encontrou em um canto do Sanatório de Salvador em 1931. Compreensível pois se trata de manuscrito.

Duplamente mal denominada: primeiro não é de Amor que se trata, ou ao menos na acepção comum e melosa do termo. Segundo, não se trata de amores mas de um só.

Leonídia amou Antônio Frederico muito antes dele escrever o Navio Negreiro e as pessoas o chamarem um tanto lusitanamente pelo seus sobrenomes de Castro Alves. Um amor fraquinho, não consumado, do qual ela só teve a honra duvidosa de segurar o poeta nos braços enquanto ele partia do mundo.

Enlouqueceu depois, dizem que de saudades do que não aconteceu.

O [anônimo ou anônima] autor desta obra [tanto ficção como projeto de vida] se propôs a escrever o que a jovem deveria ter feito para manter a sanidade.

Começa com a fuga desta do engenho, acompanhada de uma criada, e da sua chegada ao quarto de estudante do poeta no Pelourinho.

E continua descrevendo cada uma das posições, a troca das mesmas, o motivo de cada um dos suspiros, a diferença de um milímetro no diâmetro entre os bicos da jovem, que o detalhista poeta não deixou de apreciar.

E terminava [previsivelmente] com a gravidez da moça, de um filho que daria sentido a sua vida.


Lamentavelmente [diz o autor ou autora com comoventes boas intenções] Leonídia foi uma boa moça, e morreu em um hospício.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima noite – A mulher perfeita de Charles Baudelaire

Charles Baudelaire sonhou com uma mulher perfeita no dia em que o último casebre medieval na praçola em frente à Notre-Dame sucumbiu ao peso de uma bola de ferro. [A velha cidade sumia e a nova não o agradava]. Tomou mais dois goles de absinto, fumou um charuto de dar náuseas e [contrariamente a Vítor Hugo, que inventou uma trama sobre um corcunda na velha catedral] meteu-se a elaborar a perfeição.

Começou [de maneira não só banal como previsível] por pedaços do corpo – mas após encaixar seios e ancas na forma que criava na imaginação deixou para depois, superado por algo mais urgente.

Abandonou os lugares comuns [de que a mulher deveria ser amorosa, ou dedicada, ou saber fritar boas panquecas ou escrever tratados sobre histologia] e dedicou-se ao que o interessava – e que [não por acaso] era o que não interessava ao vulgo.

A mulher perfeita de Charles Baudelaire tinha formas razoáveis e sabia conferir hemistíquios, sabia decorados trechos de Molière e fumava de vez em quando um charuto. Vestia-se de saias plissadas e sabia despi-las com igual elegância [talvez mais ainda] mostrando-se inteira para seu amante [ou não inteira pois a vestia um delicado perfume de cânfora].


E acima de tudo a mulher perfeita de Charles Baudelaire tomava absinto em algum café de esquina com Charles Baudelaire.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-nona noite – A única pintura

A mais bela pintura de Cândido Portinari nunca foi intentada, e se o foi, perdeu-se há décadas.

De fato conta a história [e talvez não minta] que o mestre um dia viu [pela infinitésima-segunda vez] o mundo – e pela vez primeira não o achou injusto nem mau [a opressão capitalista, o trabalho escravo e a tragédia dos imigrantes não lhe tocaram a imaginação ou a retina].

A mão do artista de Brodósqui [mão essa exímia em segurar um preciso pincel embebido em óleo] pela primeira vez acariciou com o pincel a tela, mas não a começar em caras gretadas, marcas de varizes ou rugas à la cânion. A mão deixou-se levar [talvez por lembranças de infância ou anúncios de maiô em alguma revista] e [em lugar das linhas retas do sofrimento] passeou [talvez em delírio] por parábolas e montanhas-russas, e por três horas [dizem] Cândido Portinari ano soube as horas.

Quando [finalmente] afastou-se três passos, viu que do óleo e da tela [e pela primeira vez do óleo e da tela de Portinari] observava-o uma jovem [olhos castanhos e cabelos surpreendentemente ruivos – os cabelos de todo seu corpo]. Ela o olhava, nem oferecida e nem pudica, nua e não supreendentemente feliz.


Não se sabe o que Cândido Portinari pensou de seu primeiro e único encontro com a felicidade. Apenas que a pintura nunca fez parte dos catálogos de leilão da Galeria Bonino.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-oitava noite – Mata Hari, minha cara

Devassidão e Indecência: a história licenciosa e imoral da célebre espiã Mata Hari – é esse o péssimo título do livro [minha caríssima Tássia] e tal livro nunca foi escrito. Se o fosse [minha leitora Tássia] ele o seria por mim.

Tu [é mais que claro] serias Mata Hari – um cobra a se enrolar no corpo em números de strip-tease para oficiais franceses, a tanga de miçangas a ser tirada em câmera lentíssima. E eu seria Jean Marcel [major, bigode louro e planos secretíssimos de guerra no bolso da galocha].

E em troca desses planos [minha espioníssima Mata Hari-Tássia] eu [em completo desafio ao patriotismo, à lealdade e ao bom senso] te deitaria em mesas de bilhar [tu a beijar o pano verde], seria teu liderado [você minha chefe, por cima de mim e de tudo]. Iríamos [juntos, minha forte Tássia] para frente na vida, o que não me impediria de [por vezes] ficar por trás, bem por trás de ti, minha cara Tássia, muito próximo, enquanto tu de olhos fechados gritarias alguma quadra de Molière de trás para diante.

E um dia [é claro] seríamos pegos [como os espiões sempre o são]. Juízes com pele de tartaruga recriminariam nosso desamor pela pátria, nossa desonra e falta de pudor, e iríamos juntos [minha inefêmera Tássia] para a masmorra ou paredão, pois já teríamos vivido a eternidade do momento.

Centésima-quinquagésima-sétima noite – Cinderela, nua

Um manuscrito atribuído a Borges, depois a algum imitador dele, e finalmente a um comitê de falsários homiziado na rua 49 em Manhattan afirma ser o continuador da história clássica, hoje tida como de fadas.

Segundo tal documento [de veracidade contestada mas não sem colorido e algum interesse], os pudicos irmãos Grimm [e é o próprio manuscrito que os designa como pudicos] sabiam muito bem que a história da camponesa que casa com o filho do Rei [ou seja, a história de Cinderela] não acabava com o casamento e o cavalo branco no qual o príncipe a levava para o castelo.

De fato, o tal papel descrevia com detalhes de miniaturista a primeira noite da jovem Cinderela [sendo impensável uma princesa de conto de fadas ter experiência anterior], incluindo até os decibéis dos suspiros do jovem casal, o número e a força das investidas, a sensação do atrito entre as peles nuas e até a nuance da cor dos seios da moça.

Horrorizados, embora já acostumados ao cruel realismo das histórias de camponeses, os irmãos terminaram a história logo quando ela se tornava mais interessante, segundo o manuscrito. E até essa parte foi [previsivelmente] suprimida.

sábado, 14 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-sexta noite – Serás Cleópatra

Hoje [e talvez só hoje] serás Cleópatra. E eu [apenas pelo dia de hoje, ou então mais] serei Júlio César.

Não, não o serei [e nem mesmo Marco Antônio]: não gosto de generais romanos – na verdade nem de generais como um todo. Serei um escravo [o teu escravo]: algum Diomedes louro da Trácia ou Nicômaco amorenado da Numídia. Existirei para servi-te [minha cara Cleópatra em substituição] – e ao fazê-lo, servir-me de ti – um segredo que nós dois saberemos sem o dizer.

E não vestirei aqueles ridículos panos de filme histórico de Hollywood [ou talvez vista, sei lá, apenas para tirá-los depois]. Vou trazer-te uvas [que você comerá com as mãos por cima do rosto, em um daquelas divãs tão ridículos que duvido que os romanos de verdade os utilizassem]. Beijarei teus pés e vou te dar banho [rainhas da antiguidade não tinha vergonha dos escravos, pois, afinal, eram apenas escravos]. Vou ler Catulo ou farei Karoakê dos Beatles para te arrancar do tédio.


E depois vou te defender com minha espada [nada metafórico, é só a arma de verdade contra algum bando de bárbaros da Bitínia]. Ou talvez seja metafórico mesmo, e depois de usá-la colocar-te-ei para dormir.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-quinta noite – Allan apaixonado

Edgar Allan Poe [previsivelmente] apaixonou-se por uma moça numa tela à óleo  pendurada em um quarto de hotel de náuseas em algum subúrbio de Baltimore em uma tempestuosa noite de novembro em 1840 e só essa frase já contém muitos erros: não era uma tela mas uma litogravura; não havia tempestade mas manhã de sol torrando; e não era uma moça mas várias.

A Gravura [a qual ele apurou ser reles imitação de outra, francesa, do tempo de Luís XV, esta por sua vez a cópia de uma cena em uma parede de Pompeia] retratava três jovens a entreter sete cavalheiros [e os cabalísticos números três e sete deram voltas na cabeça de Allan].

Uma delas, na posição dos pôneis, demostrava todo seu potencial amoroso a entreter dois cavalheiros, um em cada ponta de seu jovem corpo. Outra punha literalmente mãos à obra [há sempre pessoas sem medo do trabalho, pensou o contista] em dois companheiros naquele momento de agrado. A terceira [talvez mais conservadora] coloquiava sobre um cavalheiro, outros dois a agradar em respeitosa fila.


Edgar Allan Poe [pela vez única] esqueceu relógios, assassinos venezianos e a Santa Inquisição. Viu-se a si mesmo naquela cena de vida talvez excessiva. Para afastar-se de pensamentos tão comuns escreveu mais um poema sobre corvos.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-quarta noite – A Metafísica do Nada

Fernando percorria a capital em algum monótono anoitecer de 12 de outubro de 1931 [ou 1945 ou 2117, Lisboa é sempre tão parecida, cópia de si mesma que se repete ao longo dos anos como um velho programa que o antivírus não consegue livrar de seu bug]. Saiu do Café A Brasileira e não falou com ninguém. Desceu o Chiado, subiu a Avenida da Liberdade, pareceu-lhe que alguém gritava Viva Salazar mas não virou o rosto. Na Almirante Reis cruzou com três nepaleses e 75 alemãs de mochila e pensou em atalhar pela Antônio Pedro mas desistiu.

Na Alameda Fernando sentou-se ao gramado [o chafariz ao longe com estudantes a trazer de casa o vinho pois é mais barato] e pensou nas janelas, iluminadas ou não, e como a vida era estranha, ou excessivamente simples.

Sorriu a pensar no que ocorria por detrás dos estores e cortinados. Cenas de amor a cinco, talvez. Ou a um. Ou uma. Ou qualquer maluquice, talvez mesmo a do matrimônio. Chicotes ou dores de cabeça, em possibilidade. Quem sou eu, a metafísica se quis intrometer mas ele a enxotou como inseto. Voltou a pensar nos casais. De seis, nove, talvez mais.

Fernando se viu de novo Pessoa só, na Avenida, sentindo-se cercado de libidinagem em cada alcova ou escadaria. Na pastelaria Estrela do Chile pediu três Pastéis de Nata.

Devorou-os a contemplar a velha estátua, no centro da praçola. Concluiu que havia bastante metafísica em não pensar em nada.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-terceira noite – As palavras sem as coisas

O Poeta beijou os seios da sua Musa duas vezes (uma em cada), resistiu à tentação de beijá-los uma terceira e recolheu-se [em Torre de Marfim na beira do Sena ou em kitchenette no Flamengo] para escrever sobre.

Procurava o salto da palavra ao fato – aquele momento [temporal ou de sensação] no qual escrever sobre beijar equivaleria a beijar – essas massas de sons [que a tradição denomina palavras] ao enrodilhar-se nessa constelação multiforme que denominamos de sentido se mostrasse do mesmo nível [ou mesmo melhor] que esse encontro de conjuntos de matéria a que se deu o nome [um tanto inverossímil] de Realidade.

Descobriu [e se conformou e surpreendeu com isso] que para se escrever sobre lábios, coxas e gemidos não se deve viver nenhuma dessas coisas. Para frases sobre a amada eterna ou a parceira de uma vez só, a primeira e primordial lei é que nenhuma delas deve estar presente.  

Em observância e decepção afastou-se da amada. Lutou com adjetivos e sufixos, tonicidades e hemistíquios. Deixou crescer barba, esqueceu que TV existia.


Desistiu, voltou a sua musa e beijou-lhe os seios por mais duas vezes (uma em cada) e se conformou com que as palavras voam – mas não tão alto quanto o estar lá e junto. 

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-segunda noite – A Tentação

Maria do Egito fugiu de casa e depois de afundar no deserto desenhou um círculo na areia: não sairei daqui enquanto não falares comigo. Não era [e sabia que não era] a única peregrina daquele século IV d.C. Planejava [no entanto] ser a mais teimosa.

Depois três dias as entranhas se roíam de fome. Depois de sete dias a própria fome pareceu cansar-se dela.

Inevitavelmente surgiram as tentações. Primeiro veio a sua mãe [morta havia muito] que lhe ofereceu colo e sopa. Maria ordenou que o Inimigo fugisse [pois sabia que do inimigo se tratava]. Depois vieram [tola porém perigosamente] negociantes de roupas e perfumes e os luxos que fazem o devaneio de toda jovem. Maria do Egito fechou os olhos e eles sumiram.

Veio depois [em um meio-dia sol a pino] um senhor [acompanhado de seu pai ministro] e lhe ofereceu segurança, um lar, três filhos e aliança. Maria do Egito balançou – mas sua boca gritou o não que seu coração abominava.

Finalmente veio um rapaz – bonito mas nem tanto. Sentou-se numa pedra, não ofereceu joias nem contratos. Ofereceu [disse] apenas a ele mesmo.

E Maria do Egito enroscou-se com ele, desgrenhou os cabelos enolados pela poeira e se tornou bicho e mulher.

Isso no seu delírio – afirmam os sóbrios cronistas Atanásio e Cirilo de Alexandria, que garantem a vitória sobre a tentação. Uma terceira história, esta anônima, garantia que a tentação da carne superou as do lar e da família. Por essa história não ficar bem para uma santa, foi suprimida.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-primeira noite – Amor Socialista

A mais tola das histórias de amor [sendo amor uma palavra proibida] ocorreu em um cubículo num subúrbio de Sofia.

O Decreto 49-A do Comitê Central Proletário dos Trabalhadores Búlgaros [não sem intensos debates à luz da doutrina maximalista] decretou ser o amor uma herança burguesa. E que as cópulas [esse foi o nome escolhido] não poderiam ser abandonadas ao sentimento, devendo ser organizadas pelo Partido tendo em vista os interesses das massas trabalhadoras e o medo da queda da natalidade.

O Grupamento Jovem Outubro Vermelho obedientemente escalou seu primeiro casal para a primeira cópula socialmente dirigida.

Oleg Dimitrov [21 anos, estudante de engenharia química e atleta de vôlei do Instituto Técnico] encontrou Tatiana Nicolaievna [19 anos e porta-bandeira do 34º pelotão da Juventude Comunista] em um apartamento social, com uma cama, um banheiro e uma gravura da chegada de Lênin à estação Finlândia.

Sentaram-se.

Durante 31 minutos apenas os olhos azuis de Oleg encontraram os castanho-escuros de Tatiana.

Depois a mão direita dele procurou caminho entre a blusa semimilitar marrom da jovem. A mão esquerda dela procurou abrigo entre as coxas dele.

Saíram de lá duas horas e sete minutos depois.

A pesar desse aparente sucesso o decreto foi revogado em menos de 45 horas.