sábado, 23 de dezembro de 2017

Centésima-nonagésima noite – Amemos Entre

Amemos entre, Ariana – entre campos, entre rios, entretantos, entre os seios. Entre o passado e o futuro, entre o plano e o resultado, entre o aqui e o outro lado, entre os dois.

Os dois – altos, alvos, dominantes [eu humilde criado Ariana]. Serviçal pressuroso a satisfazer os desejos de ambos – e ao contrário do que diz a Bíblia, é sim plenamente possível servir a dois senhores ao mesmo tempo.

Entre Evereste e Mont Blanc, entre São Paulo e Rio, entre Grécia e Troia, entre Tese e Antítese, serei a Síntese e me esparramarei entre ambos [minha dialética Ariana] pressionado e protegido, o mundo inteiro morno e apertado.

Entre um e outro e não serei indeciso [minha decididíssima Ariana] não há erro nem virtude, apenas os dois, comigo, humilde e zeloso alpinista a contemplá-los da base porém a desejar o ponto mais alto, ou ambos.

Entre rosados e escuros, elipses de Kepler ou perfeitos círculos da Cosmografia Ptolomaica, eu [com a humildade dos Astrônomos Clássicos] saberei que a mim cabe apenas a contemplação da harmonia, a dois, sem jamais alcançá-la, ou até alcançando-a afinal, e afinal beijando-a afinal, à beleza – ou à beleza em dois.

E eu [rio Colorado em meio ao cânion] sentir-me-ei extenso e profundo, oprimido e acolhido, a contemplar a beleza do céu, mais bela porque vista lá do fundo.

E ali mesmo nos amaremos [Ariana], entretantos, entre campos, entre rios, entre os seios.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Centésima-octogésima-nona noite – Séria Conversa

Serei Larissa, Loretta ou Morgana [algum nome diferente assim], acoplado de algum estrangeiramento [MacCartney, Strassburger ou Poyet] pois toda mulher-de-poder [nos filmes] tem um toque de gringo no sobrenome. E tu [Antonio Marlos] serás Antonio Marlos – Biceps nos trinques, olhos escuros como gosto, seis pares de centímetros a mais na altura e salário dois dígitos menor que o meu. Serei a Chefe de Relações Internacionais, Treinadora do Time ou Capitã encarregada de pôr na linha os recrutas e tu temerás o meu poder – temarás o meu poder mas teus olhos não descolarão da alça do meu sutiã que transparecerá na blusa apertadíssima, only-for-you.

E te chamarei para conversa muito séria no meu vestiário after hours [eu técnica], tudo vazio, trancarei a porta e engancharei a chave no sutiã [cena de filme anos 40] e revelarei [tirando a ponta da caneta dos meus lábios cobertos de gloss vermelho-sangue] que que te flagrei [Antonio Marlos] a quase beijar a estagiária do turno da noite ou a secar a minha saia justíssima, pouco importa.

Direi que deverias te envergonhar e como castigo mandar-te-ei ao chuveiro sem pena de gastar água – e voltar sem nada [eu vestida]; tu em pé e eu na poltrona a verificar cada detalhe e cada tamanho, eu como poder total e tu como estagiário, recruta ou qualquer outra posição em que te possa reduzir a meu objeto. Objeto – cavalo ou moto que dirigirei, posição exata, eu Loretta Poyet, Chefe, Capitã ou Treinadora do Time.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Centésima-octogésima-oitava noite – Imperatriz do Rio Lena

Tu serás Imperatriz do Lago Balkash ou das nascentes do rio lena [por aí], aquela que [dizem] o Poder e o Tédio Absolutos fez baixar um edital: Riquezas e Luxos infindos àquele que satisfizesse os reclamos da soberana – e a cabeça cortada aos candidatos que não. [As estrofes dos bardos da Corte e os raros Lobos-Guarás do Zoológico do Palácio não seriam suficientes para distrair-lhe os dias, e culpá-la quem haveria de?]

O Prêmio atraiu muitos e a perspectiva da punição repeliu muitos mais: escravos louros do Épiro, bronzeados da Núbia, guerreiros da Noruega – todos encolheram [em todos os sentidos da palavra] com o temor do fracasso.

Somente eu [ó minha Rainha] apresentar-me-ei diante de teu trono, e será no trono mesmo – não esperarei nem aias nem veneráveis conselheiros deixarem o Salão e três passos me deixarão bem perto de ti e das tuas pernas, as quais separarei [antes mesmo de te dizer bom dia, e para que essas delicadices cordiais?] com minhas mãos a quase dar a volta nas tuas coxas.

E tu [minha pobre rainha] terás de te segurar no espaldar do trono para aguentar o movimento, o mesmo que fará os bicos se moverem em admirável ritmo próprio a marcar sutil melodia.

E te colocarei de joelhos e ficarei de joelhos também [escravos um do outro, em eterna submissão soberana]. E me nomearás Entretenedor Oficial da Imperatriz – cargo com ouro e joias e tendo que me dedicar apenas a desenvolver bíceps e a eliminar teu tédio – emprego indigno afinal, mas nem tudo que é bom é digno.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Centésima-octogésima-sétima noite – Personal, very special

Já que sou seu tudo, por que não ser seu Personal? Very Special, Sexpersonal, only for you, why not, Baby, e se essa profissão não existe, neste momento passa a. Biceps e Psoas a querer arrebentar a inevitável camiseta, tirarei os óculos escuros ao adentrar a Academia após saltar da moto – pois todo Personal anda de moto. No caso a BMW K 1300 S de quatro enormes cilindros e a potência maior que a de muitos garanhões, ou cavalos. E você morderá os lábios [falsa tímida] ao ouvir essa técnica explicação e se estenderá inteira para que eu te alongue.

Academia só para nós, eu posicionarei você minha aluna no exercício com minhas mãos a garantir que cada mão, coxa e seio estejam na posição exata. [Se você disser que é difícil se concentrar assim, eu lhe responderei No pain No gain]. E a cada novo exercício [em nome do correto desempenho e da liberdade de movimentos] eu vou lhe tirar a liga do cabelo, o top bicolor berrante e o restante não durará muito tempo. Para dar bom exemplo eu também não ficarei com muita coisa.

E lhe direi Mais um pouco a cada movimento de afastar as coxas, e vou lhe animar a fazer a barra fixa dizendo que consegue [e para lhe ajudar tirarei o que resta de sua roupa para que você levante só o próprio corpo].

E lhe direi Bom Treino hoje, e antes que eu chegue ao final do Até Amanhã você me empurrará - e será a minha vez de sentir a força de seus tríceps  e peitorais a me imprensar contra a parede – e concluirei que o treino está valendo a pena.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Centésima-octogésima-sexta noite – Only For Women, Helena Maria

Serei seu cafetão, Helena Maria – amante profissional, gigolô, call-back, only for women, vulgaridade máxima – quatro horas de musculação por dia, whey, maltodextrina e tríceps a pular da camiseta um número menor apenas para mostrá-los mais.

E máximo de classe – saberei distinguir um Merlot de um Cabernet Blanc, falarei sobre os últimos desenvolvimentos da política no Leste Europeu e ainda desempenharei papel de seu sobrinho lá de São Pancrácio da Serra, se por acaso você topar com uma prima de uma conhecida naquele bistrôzinho discreto no qual você achou que não toparia com ninguém.

Serei militante, Helena Maria – Direitos Iguais. Por seis mil e setecentos anos executivos em cidade estranha, viúvos entediados e mesmo cavalheiros com aliança a fim de uma variada tiveram companhia na outra ponta de uma linha de telefone – cabelo na cintura, cada músculo nos trinques, sorriso permanente e bronzeado em cada vinco. E excetuando o comprimento do cabelo isso serei eu [Helena Maria], versão masculina para você - executiva em cidade estranha, viúva entediada ou mesmo madame com aliança a fim de uma variada.

Tirarei tudo devagar, a começar do nó da gravata Hermès [você como plateia de meu show único], piscarei uma primeira vez no terceiro botão da camisa negra e uma segunda vez no zíper. Brindaremos mais um Moet e serei professor ou aluno, jóquei ou puro-sangue – você decide, Helena Maria, pois serei seu cafetão - amante profissional, call-back, only for women, only-for-you.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-quinta noite – Gilberte, Não Te Conheço

Gilberte, não te conheço. Mas se te conhecesse [minha francesíssima Gilberte] eu seria Marcel [francês também, como já devidamente estabelecido acima]. Passearíamos ao luar [ou ao sol, melhor] depois da missa de domingo em algum caminho florido [tela de Renoir ou Monet] de certo senhor chamado [talvez] Swann, 1907 ou 8 no cabeçalho do jornal.

Adentraríamos um caminho de choupos [pois todo passeio paradisíaco Europa-de-antigamente tem choupos, e eu nem sei o que é isso] – tu com teu vestido de tantas frufrus e rendas que eu nem saberia onde estou, e eu a gravata meio-fraque a me estrangular.

À beira de um tranquilo lago [e como nos pôsteres há tranquilos lagos] tu me falarias de tua mãe Odette, a smart, e como ela falava inglês numa época em que quase ninguém. E eu te contaria três anedotas cuidadosamente selecionadas sobre a minha tia Leonie, que nunca sai da janela e conhece metade e meia da cidade. [Também não há muito a quem conhecer nesta cidade de Combray, que desconhece talvez a própria existência].

Isso, se fôssemos aquele Marcel e aquela Gilberte de Proust. Mas não o somos – e eu [não Marcel mas eu] usaria essa toalha de piquenique para forrar aquele gramado europeu [minha falsa Gilberte] e tu praticarias a nobre arte do hipismo [os frufrus e as sedas amontoados de lado] e poderíamos até contemplar o ápice do Monte Branco. Se estivéssemos de olhos abertos, minha brasileiríssima Gilberte [a qual conheço].

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-quarta noite – Explícitos, Tássia

Explícitos, Tássia. E claros e diretos. E toda uma coorte de adjetivos que só expressam uma total falta de carinho, ternura, paixão, decência e outras bobagens que inexistem neste quarto de iluminação branca de chapa e esta mesa na qual a ponho [Tássia] e na qual minhas mãos abarcarão [quase] suas coxas e as afastarão, cada um uma em hemisfério diferente.

Olho no olho, desconheceremos em sua completude o significado dessa estranha palavra amor [talvez a marca de algum novo brand de bebida energética]. Saberei, no entanto, o triângulo misto de poliamida e algodão semitransparente com pseudobordados de folha de parreira que lhe envolve – envolve muito pouco de você, de tão pequeno que é. Isso, claro, antes de se tornar o monte de farrapos no que eu [selvagem talvez] o transformei, a fazer companhia no solo à tua minissaia, a uma só feita branca e nada decente.


E suas mãos me empurrarão [sem ternas carícias ou juras eternas] contra a parede, e os sapatos, meias, jeans e o resto se farão companhia no chão, e serei cola na parede [você será algum cartaz dadaísta ou de show de música eletrônica, e a parede será a parede] – eu no meio, recheio de sanduíche, e entre nós dois não haverá segredos [Tássia], não por conjunção de almas ou por algum diálogo respeitoso e adulto, mas porque não existirão mais panos ou botões a nos separar, e por que haveria.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-terceira noite – Olívia, Sou John

Olívia Newton-John, serei o teu John, o Travolta. Serás de qualquer lugar: Olívias havia em London, Buenos Aires e Itaiçaba.

Compraremos Long-plays de Miss Lene e das Frenéticas, tomaremos sorvete de maracujá com baunilha [os tempos eram mais inocentes, ou não], e não despregarei olhos dos teus pés [talvez por alguma patológica fixação – e também para conseguir não rir de tuas ridículas meias dancing days de camadas de cor estridentes com fios douradinhos].

Iremos a um Mingau-pop no fim da tarde [sim, podem desterrar-me ao planeta Saturno mas o nome era esse mesmo] e os tempos não eram melhores [Olívia]. Os tempos eram [em verdade] muito chatos – apesar dos poucos carros [que nós achávamos que eram muitos] e da possibilidade de voltar à meia-noite sem colapsar de medo.

Ou os tempos eram interessantes – chatos éramos nós [Olívia e John] que não éramos o que éramos. Ou éramos – mas não fazíamos o que devíamos fazer.

E o que devíamos: em primeiro lugar, meditar sobre a implausibilidade de um futuro e a diminuta sabedoria de se viver em função dele.

E em segundo lugar, eu deveria ter te apoiado numa mesa [com cada mão a envolver uma dancing days], e afastado as duas meias o mais que possível uma outra [com teus tornozelos dentro] – e a calça cocota de barra baixíssima já previamente dobrada ao lado a esperar. Uma membrana de borracha nos livraria de consequências aborrecidas e seríamos Olívia e John.

 Mas éramos chatos [Olívia, do teu John], ou talvez os tempos é que fossem, mesmo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Centésima-octogésima-segunda noite – Arrasaremos em baile Funk

Funkeira Tássia, arrasaremos em baile Funk. [Serás MC Tássia pois toda funkeira tem iniciais]. E eu serei MC Marcão, Paulão ou Ricão – e essa tempestade de aumentativos não dirá respeito à enormidade dos meus conhecimentos de álgebra ou epistemologia. Vulgar sem dúvida mas seremos vulgares [Tássia] – tanto quanto o meião rede de pescador e as botas cano longo vermelho-sangue de plástico que usarás além do microshort, e o meu jeans apertadíssimo a multiplicar cada saliência abaixo dele.

Para lá do para lá, curva-faz-o-vento, iremos ao galpão – pleno de tchutchucas, tigrões, bondes e demais nomenclaturas inacessíveis aos não-iniciados. Faremos dança [malfeita, mas quem se importa com os esmeros da arte coreográfica?]. E não será bem dança – serás sol [ou Planeta Júpiter talvez] e eu uma de suas luas – tu te baixarás até o rés do chão a sacudir mesmo o microbustiê e o pingente agarrado ao inevitável piercing no umbigo. Eu [a mandatória camiseta regata a salientar os bíceps e tríceps] piruetarei em tua volta e tentarei por seis vezes colar lábios-em-lábios – e tu me empurrarás dizendo que os três ou dezenove anteriores eram muito melhores, e cada insulto me fará quedar mais perto.

E na sétima vez [no previsível beco-lá-atrás] serei papel colado na parede e serás papel também, entre eu e o reboco. Explorarei a marca da tua lingerie e borrarei o batom gloss brilhento-púrpura. E tua mão se declarará inextricável inimiga do meu zíper.


Arrasaremos [Funkeira Tássia] em baile Funk.

Centésima-octogésima-primeira noite – Musa de Kpop

Musa de Kpop, tu te chamarás Yura, Hwang ou Jihae – sorriso de plástico, cintura fina ao infinitésimo, pele lisíssima a rivalizar com a neve de alguma montanha na fronteira com a Manchúria e, [já que estamos a falar de montanhas], com a barra de tua microssaia tão alta quanto o Everest, que não é perto mas fica na Ásia.

E eu serei Jeon, Park ou Kim, que importa [e que original].

Tu [Musa de Kpop] dançarás num palco cruzado por refletores e cenário alvíssimo ao lado das outras e ninguém se lembrará de que a música é eletrônica e a letra faz menos sentido que um canguru cor-de-rosa [Toda a Filosofia do Kpop se resume em Eu sou linda, tem muito carinha atrás de mim, você vai ter que me conquistar – diria Confúcio, e Confúcio nem era coreano]. A cada shot a edição do Music Video te fará mudar de roupa – e aparecerás azul, amarela ou vermelho-brilho-acrílico. Mudarás de posição a ocupar os espaços do palco a lembrar dos gritos do coreógrafo no ensaio. E nos intervalos dará 437 autógrafos e contarás cada meia caloria de cada meia folha de alface.

E no meu palco [no nosso palco – porta trancada, janela à meia-luz] faremos dupla a nos afastar e enroscar olho, lábios e tudo e a altura de tua saia não fará diferença [aliás não haverá saia].


E tu te chamarás Yura ou Jihae, e eu Jeon ou Kim, e quem se importa.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Centésima-octogésima noite – Por duzentas e trinta e nove noites

Por duzentas e trinta e nove noites possuiu-me Manoela – ela Imperatriz e eu escravo, ela Comandante de Nave Espacial e eu grumete novato, ela Proprietária de franquia de sucos naturais e eu estagiário tímido. Poucas dúvidas havia [e além da retórica, não havia nenhuma] sobre quem detinha a posição superior em todos os sentidos da expressão.

Macacão prateado de ficção científica classe B, tailleur verde-forte de executiva, uniforme de oficiala da Cortina de Ferro em filme de James Bond, Manoela vestiu muitas roupas [e despiu mais ainda] antes de se aproximar – as mesmas que eu [estagiário ou grumete] só tirava sob suas ordens – eu a morder os lábios de timidez.

E Manoela impregnou-me de ordens, e me fez fechar os olhos [ou abri-los ao máximo], vestiu-me de Tarzan ou de ternos iguaizinhos aos de John Kennedy – isso, pouco antes de tirá-los peça por peça, e depois de uma peça teatral particular [da qual era a diretoria, produtora e público] mandar-me fechar a porta com cuidado ao sair. Uma Diretora e Roteirista que se esmerara em deletar as palavras respeito, decência e pureza além de seus equivalentes sinonímicos da nossa vida, da tal nave ou da loja de sucos.

Por duzentas e trinta e nove noites possuiu-me Manoela, ela Imperatriz e eu escravo. E hoje é a ducentésima-trigésima-nona noite.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-nona noite – Perdidos Sem Espaço

Eu seria então estadunidense, piloto da Força Aérea Americana, deslocado para serviço em naves espaciais. [Terei nascido em Cincinnati ou no Brooklin mas meu destino levar-me-ia bem longe]. Exibirei cabelo preto, figura esguia, habilidades para manejar jatos hiperatômicos e tomarei como função levar uma família para a galáxia de Alfa Centauro. Em outras palavras eu seria o Major Don West. E tu serias Judy Robinson – cabelos de ouro e olhos azulíssimos a contrastar com irmãos e pais com os quais não pareces ter nada em comum.

Passearíamos por algum planeta perdido [essa família sempre se mete em algum planeta perdido] e [distraidamente de propósito] nós nos desviaríamos por detrás de algumas daquelas pedras obviamente de papelão – a única forma de nos livramos daquele robô boboca e daquele menino Will de voz gasguita, sem falar naquele chato falso Doutor que sempre se mete em encrenca].

E então [Judy] a trinta mil anos-luz de distância tu me empurrarás contra alguma árvore de plástico, tirarás a trança de ouro e o semblante de boa moça do caminho e com as duas mãos abrirás o macacão prateado – a mostrar-me aquela firmeza total e enigmática debaixo dele – o qual logo se amontoará inteiro ao chão, mal coberto pela minha roupa igual. E me empurrarás [Judy Robinson] contra alguma rocha mal construída e mesmo no sideral espaço serás louríssima amazona.


Antes que anunciem o episódio da semana seguinte.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-oitava noite – História Noir

Serei Christopher Marlowe ou Sam Spade [Private Eye  - Detetive Particular] e tu [Tássia] serás Tássia – um nome exótico, alatinado, perfeita para uma Hollywood Film Noir [Los Angeles em 1944 pela janela de meu escritório].

Tu [Femme Fatale] te sentarás na beira da minha escrivaninha, o vestido tubo preto apertadíssimo sem alça [minha secretária a morder os lábios de ciúme na sala contígua], e me contarás histórias de algum irmão sumido chantageado por uma quadrilha sobre um colar de esmeraldas perdido do tempo dos faraós herdado de uma velha tia. E eu [chapéu de feltro na mão e sorriso de Humphrey Bogart cópia xerox] perceberei que é tudo cascata – o irmão é um ex-marido, o colar foi roubado, tu és a verdadeira chefe da quadrilha e não me surpreenderia se houvesse uma Smith & Wesson calibre 36 ao lado do teu Chanel n. 5 dentro dessa bolsa violeta.

Eu pedirei pagamento muito especial em adiantamento e antes que tu tires duzentos dólares da bolsa eu apertarei o vestido tubo e o conteúdo dentro dele entre minhas mãos e os lábios nos teus [os teus com o inevitável batom paixão-sangue]. E minhas mãos levantarão o tecido negro e mostrarão a cinta-liga [toda mulher fatal usa cinta-liga] e te apoiarei na escrivaninha, farei voar meu chapéu e te livrarei dos saltos-altos, do broche nos cabelos e de todo o mais.

E Humphrey Bogart [a comer pipocas a ver nós dois em algum cinema lá no Céu] tirará mais uma baforada no cigarro. E se roerá de inveja.

Centésima-septuagésima-sétima noite – Vivamos, Minha Querida, E Amemos

Vivamos, minha querida [Tássia], e amemos, e as censuras desses velhos tão severos não valham para nós um só centavo. A Roma Antiga ou a São Paulo de hoje empanturram-nos de tédio [sem clorofórmio nem vinho do Lácio para contrabalançar], e empurram-nos para longe. Tomarei um volume dos poemas de Catulo [terei prazer em te ver fazendo tua mala] e sumiremos para longe – a Lusitânia talvez, ou lugar nenhum.

Tomaremos uma galera no porto de Salerno [ou um voo da TAP, que importa] e desde que ponhamos os pés no túnel do Aeroporto [ou na primeira pedra da Via Appia] tu serás minha, como nunca.
Já existiu outra Tássia [minha cara] e tinha nome parecido. Era casada, e não com Catulo, e o pobre poeta roía os dedos de ciúme – e com os mesmos dedos tomava os pergaminhos e a ela escrevia poemas de amor e algo mais.

Os mesmos poemas que reescreverei [minha cara] não em pergaminhos mas em teu corpo, em alguma meia-noite de um hotel da franquia Quality Inn ou estalagem na Provincia Narbonensis.

E esse poema a quatro mãos [as tuas e as minhas] nós o escreveremos direto, inverso, de posição trocada, e mais uma vez. Tu alpinista subirás a montanha, completamente no seu auge, e a montanha serei eu.

Vivamos, minha querida, e amemos, e as censuras desses velhos tão severos não valham para nós um só centavo. E esse verso escreveu-o Catulo – ele escreveu e nós o viveremos. Pois São Paulo ou Roma Antiga nos enchem de tédio, e fugiremos para a Lusitânia talvez, ou para lugar nenhum.


Obs: queria fazer uma coletânea de textos eróticos – mas noto que estão cada vez menos. Enfim...

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-sexta noite – O Duplo Ernesto

La Verdadera Vida de Ernesto Guevara [Buenos, Aires, 1976 ou 1977] nunca chegou a existir. Ou quase – a Ditadura Argentina inexplicavelmente mandou queimar os setecentos exemplares alegadamente impressos dessa brochura de qualidade duvidosa – inexplicavelmente pois se tratava de obra radicalmente de direita. Dela só restaram pedaços, publicados no suplemento literário do La Nación nos quatro domingos do agosto de 2005.

De fato tal obra [inicialmente atribuída a Borges, depois a Bioy, e posteriormente a ninguém, sendo ninguém um autor ou autora no anonimato] ganhou um lugar – [modesto, vá] no já modesto Panteão da literatura erótica.

O enredo começa com um jovem Guevara dobrando à direita na calle Mendoza em uma noite de novembro de 1946. [Na verdade dobrou à esquerda, topou com uma livraria de traduções de livros de revolução e o resto todos sabem].

O verdadeiro Ernesto [segundo o livro] encontrou um amigo, este o levou a conhecer umas moças mui libres, e o garoto de dezoito anos extasiou-se pelo amor carnal e não mais parou. As descrições de festinhas sem muita roupa, a dois, a três, a trinta, chegam a ser monótonas de tão recorrentes.

Curioso que os dois Ches morreram cedo, o Che do livro mais cedo ainda, com 38 [o outro teve um ano a mais].

A única vantagem [pelo menos segundo o reacionário autor ou autora] é que, ocupado em tirar sutiãs, o Che do livro não pensava em revoluções.

domingo, 12 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-quinta noite – Rousseau Narciso

Jean-Jacques Rousseau apaixonou-se por sua prima [na verdade pelas duas primas] em um lugar chamado Bossey [meia dúzia de casas que Deus esqueceu ou que na verdade nunca soube que existia] em alguma tarde de 1720 ou 21, mais tardar. Tinha oito anos e as primas seus doze ou treze, e o futuro filósofo, educador, memorialista etc. [que nunca considerou nenhum desses louvores mundanos mais importante que suas paixões] narrou como as mocinhas se aproximavam dele, braço a roçar no braço, a lhe ler histórias.

Foram os primeiros avatares de jovens e mulheres que lhe atravessaram a vida – e quem lê suas memórias se ataranta ao ver o quão pouco Aristóteles e Agostinho importavam pouco para a vida de Jean-Jacques. [Um beijo lhe valia muito mais que qualquer paixão do intelecto.] A loura Madame de Warens acolheu-o como filho e algo mais – uma paixão esquisita por ela ser mais velha e por ser paixão dividida com outro – em uma forma setecentista de Ménage à trois.

De nobres a serviçais, as paixões do filósofo [a maior parte das quais imaginária] cobriam todos os extratos sócias, em protótipo carnal de democracia. Pulava de uma a outra como quem passeava pelas matas do Ródano [outra paixão sua].

O Grande Amor de Jean-Jacques Rousseau foi Jean-Jacques Rousseau. Essa frase [dita por ninguém] explica muito, ou tudo. Quando uma garota entendeu isso, ele teve filhos com ela [não se casou, pois querer isso era exigir demais do doce Narciso de Genebra].

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-quarta noite – Dante e Beatriz Antimatéria

A mais bela das Histórias de Amor consiste também [e talvez] na mais sem graça.

O enredo é conhecido: a flor da linhagem dos Portinari encontrou a epítome da família Alighieri. Era Florença no século XIV e as inevitáveis cismas de família obrigaram a jovem [15 anos] Beatrice Portinari a ver o amado e jovem Dante Alighieri na igreja entre a casa dos dois. Ver, literalmente – um namorico de olhares por cima de missais debaixo da vigia de aias.

Ele obrigado a se exilar, pela eterna política. Ela obrigada a casar-se pela não menos eterna economia. Com um homem velho, feio, etc. Cai doente. Um mês depois morre. Ele recebe as terríveis notícias. Muitos anos depois escreve a Divina Comédia, colocando-a como uma das Virgens do Paraíso, eternamente acompanhando nossa senhora.

Tão nobre e pura história desconvida a qualquer tentativa de escrever uma versão mais picante.

Uma Beatriz e Dante versão adulta só poderia existir em um mundo antimatéria, daqueles de seriados dos anos 60, no qual os mesmos atores representavam o seu oposto, apenas com roupas de cores inversas.

Hippies do ano 1300, uma Beatriz antimatéria puxaria um Dante idem para vagarem pedindo carona [em carroças, claro] pelos morros do Norte da Itália, onde copulariam como bichos – em matas cheias deles por sinal, nessa época de pouca destruição ecológica.

O único problema é que talvez Dante preferisse fazer coisas mais divertidas a escrever a Divina Comédia. O mundo consideraria isso uma grande perda. O jovem casal talvez não.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-terceira noite – Teu escravo

Brinquemos [minha cara Tássia] ou não: levemo-nos [muito a sério]. E na nossa brincadeira [que não o é] tu serás Cleópatra, e eu teu escravo. Não, nada de Cleópatra. Não toleraria pensar em Júlio César e Marco Antônio e te dar beijos [e mesmo escravo terei ciúmes].

Melhor: princesa chinesa [sobrinha-neta de Confúcio, que o velhinho previu que faria muitas sapequices na vida] mas não. Digamos, jovem Rainha de algum reino na beira do lago Balkash lá pelo século XIV.

Tédio e devassidão, como toda jovem Rainha que se preze, e eu [sem nenhuma originalidade na história] serei seu escravo: alto a roçar na porta da alcova imperial, os tríceps e peitorais a saltar, pele de tigre a fazer de tanga.

E tu me rodearás a contemplar cada detalhe do teu objeto [serei teu objeto, lembra? Teu escravo]. E a falta do que fazer te fará ter ideias de como se distrair nessa noite [nas noites antes do Netflix, que convidavam a devassas distrações].

Tu farás voar a lembrança do pobre tigre [e ninguém contém as mãos de uma Rainha]. E como toda soberana, no fundo pensarás apenas no tamanho dos seus domínios.

E então serei inteiramente sua posse – posse inteira, que não espera a dona dar ordens: os peitorais e outros músculos servirão para te eliminar qualquer tecido supérfluo e te erguer mais alto que qualquer outra mortal [Imperatriz que serás] e te colocar com firmeza e cuidado no teu trono.

E seremos escravo e Rainha [minha cara Tássia] e os livros de história não lembrarão de nós.

domingo, 5 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-segunda noite – Coração Profundo, o Pornô Da Existência

Coração Profundo teve sua estreia mundial em três cinemas poeirentos nos subúrbios oeste da cidade de Washington no dia 7 de agosto de 1971. Poeirentos e segundo alguns, pulguentos – o que seria bem coerente com a trajetória cinematográfica de um filme pornô segundo a turma dos que insistem em considerar a Sétima como uma forma de Arte, sem esquecer uma ponta de moralismo.

A Obra de Arte Independe da Minha Vontade – essa frase [de erotismo zero] abria o filme, projetada na tela por nove longos segundos, e seguida [e nisso o filme não decepcionou sua plateia esperável] de cenas de uma jovem loura sem problemas com  frio [pois usava muito poucas vestimentas, e geralmente nenhuma] em agradável companhia [ao menos para os participantes] de musculosos rapazes igualmente sem muito gasto com pano, e a posterior vinda de outras moças, algumas morenas, outras nem tanto, etc.

A obra causou a reação habitual da época a filmes excessivamente realistas. A defesa do seu diretor [através de pseudônimo] é que não pretendia agradar – e sim mostrar o que achava que devia ser mostrado. Que o cinema, nem a Arte, existiam para agradar quem quer que fosse nem reforçar as crenças de ninguém. As cenas lá estavam, as moças e rapazes também. Que cada espectador fizesse o que quisesse, com as cenas ou com sua vida.

Essa tentativa de rodar um pornô existencial foi compreensivelmente rejeitada e o filme recebeu carimbo vermelho da censura.

sábado, 4 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima-primeira noite – Os Amores de Margarita

Os Pérfidos Amores de Margarita nunca foram escritos. De fato este romance biográfico [que não era um romance e não chegava a ser exatamente biográfico] não passava de um projeto de roteiro, a ser filmado no último bimestre de 1949 mas que na verdade nunca chegou a sê-lo, por arrependimento daquele que nunca chegou a ser seu diretor.

O roteiro [acusado não inteiramente sem razão de transparecer alguma incoerência e mágoa] começava na inocente infância de uma inocente menina chamada Margarita [e ênfase talvez exagerada na inocência se torna explicável pelo que veio depois].

Na segunda parte, Margarita tornara-se mulher. E que mulher – alta, cabelos louros pintados [e uma testa alargada à base de dolorosos tratamentos], e aquele olhar de Seduziria-até-o-Todo-Poderoso-se-quisesse.

E seduziu não o autor do Mundo mas um autor de filmes tímido baixote e gordote. Casaram-se, todos os big-shots de Hollywood como padrinhos.

O momento picante do roteiro começava com a viagem do tal tímido e gordote para o Ceará ou para o País Basco, atrás de experiências que ninguém teria. E Margarita [já reduzida a Rita] tirava o vestido para um e o sutiã para outro, às vezes para dois ao mesmo tempo. Ou três.

Obviamente destinado a mostrá-la como ser cruel e o marido como pobre vítima, o filme nunca chegou a ser completado. O marido [agora ex] e diretor achou demais para seu coração.

E Rita Hayworth e Orson Welles nunca mais se viram.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Centésima-septuagésima noite – Darío, Manoela, e mais nada

Rubén Darío encontrou Manoela [pouco mais dela sabemos que seu nome, ou talvez nem isso] em uma tépida tarde num quintal em Manágua, em algum dia lá pelo final do século XIX – os dois eram vizinhos]. Parentes os flagraram e se escandalizaram [mãos nas bocas e olhos a esbugalhar] e além desse fato [obviamente com testemunhas] pouco se sabe o que fizeram antes.

Talvez Rubén tivesse demorado léguas para abrir a boca [era tímido e temia dizer alguma frase sem eufonia]. E talvez [a especulação é plausível] Manoela tomasse a iniciativa [pois era expansiva].

E lhe falou [a mulher] de todos os picos de montanhas que gostaria e subir e dos lagos em que sonhava navegar, deste os do Norte da Itália até os encravados nas cordilheiras do Quirguistão. E depois confessou as épocas em que gostaria de ter vivido [desde um previsível Antigo Regime antes da Revolução Francesa, até uma pouco esperável época futura, em um momento em que as verduras pulariam sozinhas da terra para os pratos e no qual as pessoas seriam andróginas].

Quanto a Rubén, decorou cada uma das falas dela [serviriam de inspiração para seus livros]. Quando abriu a boca, disse Sonho com uma poesia acrática, sem regras.

Os parentes os encontraram sem nada e abraçados. Surpreenderam-se. Pareciam não saber que estavam assim.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-nona noite – O Mundo seremos nós

E não restará mais ninguém nesse mundo senão nós dois [minha quase solitária Tássia, e o mundo será o planeta, a proverbial ilha deserta ou esse quarto. E nesse mundo [que seremos nós e que será nosso] não existirá a palavra decência [em nenhum dicionário, e aliás os dicionários também não existirão].

Assim como seus sinônimos pureza, virgindade, castidade, respeito e pudor – todos serão empacotados e atirados em algum armário poeirento do qual ninguém se lembrará da chave. E seremos animais [minha mais que felina Tássia] – ou não o seremos – bichos não amam direito, nem fisicamente – querem só a eternidade da sua espécie. E nós [minha e/tenra Tássia] queremos a indecência eterna – a mesma indecência que não existirá, pois tudo será como é. E trocaremos de posição, e voltaremos à anterior, e inexistirá qualquer pedaço de nós dois [corpos ou almas, qual a diferença?] que deixe de ser explorado.

Não descansaremos – tomaremos alguns momentos [importa seu tamanho? Segundos, sécilos?] para acumular mais [como a represa antes de romper de tanta água] e voltaremos ao que nunca deixamos de fazer.

E o mundo não existirá, minha cara Tássia – ou existirá, e seremos nós, e o inexistir da palavra decência.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-oitava noite – O Filósofo encontra o Anjo

O Diabo visitou George Frederico Guilherme na calçada próxima à janela do quarto de sua irmã a 25 de março talvez em 1785 ou 1786 [esse dia, aparentemente inexpressivo, marca nove meses para o nascimento de Cristo, e tal (possível) coincidência não deixou de ter seus intérpretes]. E o visitou em forma de mulher [na verdade de uma jovem, para combinar com a idade dele – então mal saído da adolescência]. Mulher bela [óbvio – o Inimigo é mau mas não burro].

O garoto [voltava da biblioteca] deixou a pilha de livros de gramática [o futuro Inimigo do gênero humano (segundo críticos conservadores) ainda não pensava em dialética, o Poder ou Napoleão (que seriam suas três obsessões futuras)]. A garota [na verdade o Diabo] inventou qualquer nome [Liz ou Helga, ninguém soube direito] e o chamou a sentar-se ao jardim [era noite em Stuttgart].

George pode ter pensado em rasgar-lhe o sutiã, beijar-lhe um bico enquanto acariciava o outro e em fazê-la mulher ali mesmo. Pode ter, embora [segundo alguns, que não adiantam uma razão precisa] pouco provável. Igualmente pouco provável era que tenha discutido sobre a sua ciência da história [ele ainda não a tinha].

O idílio [dizem] encerrou-o sua irmã, que acordara, e o puxou para dentro. E que era ciumenta dele.

De qualquer forma [diz quem o detesta] a garota não era o Diabo. Era um anjo. Diabo foi quem fez com que George Frederico Guilherme Hegel tenha desistido do Amor para fazer filosofia e plantar Revoluções.

sábado, 28 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-sétima noite – Os Amores da Falsa Marlene

Cada dia sem você é solitário e triste estreou em um cinema na rua Wichmanstrasse [não dos melhores da velha Berlim] no dia primeiro de janeiro de 1919 e dificilmente se poderia imaginar pior timing e pior local.

Aparentemente tratava-se de estreia adequadíssima. Jeder Tag ohne dich ist einsam und leer [sendo este o título original] até pelo nome parecia rimar com os tempos – a guerra perdida, a inflação a mostrar os dentes. O filme [no entanto] ao longo de seus poucos sessenta e dois minutos nada tinha da melancolia do seu nome  dos tempos.

O filme se inspira [ou plagia mesmo] o Retrato de Dorian Grey, e conga a história de Lenny, bibliotecária da Escola Média de da cidade de Braunschweig que pintara um retrato de si mesma no dia em que decidira se manter eternamente pura e dedicar sua vida ao pó dos livros. Inevitavelmente o filme se centra não na vida de Lenny mas do seu quadro, a mostrar os amores da jovem mulher, amores dois, a quatro, a um, a uma, de todas as imagináveis maneiras [as cenas da vida de bibliotecária compreensivelmente não atraíram tanto interesse]. Desnecessário dizer que o filme foi censurado antes de três dias.

Uma fantasiosa versão afirma que Lenny era uma alusão a uma jovem Marlene Dietrich – que seria a atriz do filme. O que explicaria o sumiço das fitas, pois ela [depois de célebre] as terá mandado comprar todas. A essa explicação se contrapõe outra, de que o filme era bobo mesmo e por isso ninguém se deu ao trabalho de preservá-lo.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-sexta noite – Eva, Buenos Aires à meia luz

E a voz de Carlos Gardel o abandonou pela uma hora e trinta da manhã de 13 de março de 1920 no palco do Café Belgrano, na esquina da Florida com Nove de Julho, e ninguém sabe quem anotou os detalhes com tanta precisão [talvez algum bacana que trocasse o dia pela noite e viciado em apostas de boxe no Luna Park]. Carlos cantava o terceiro tango da noite, uma versão adulterada e letrada de La Cumparsita e a nota Fá Maior se recusou a sair.

A plateia não o vaiou [não porque não merecesse mas por puro constrangimento] o que tornou o silêncio ainda mais pesado. Saiu à rua decidido a se tornar contador ou comerciante de peixe.

Foi então que ela lhe pediu um cigarro. A borda de seu vestido tinha plumas, usava cabelo curto e uma piteira [afinal era Buenos Aires, de madrugada, nos anos 20]. Ele lhe perguntou seu nome, ela disse que escolhesse um – e Carlos a denominou Eva, depois Evita – nada a ver com a futura ídola de três décadas depois mas a coincidência não deixa de ter seus especuladores.

Evita levou Carlos à calle Corrientes, 348, segundo piso. Ela tocou um tango na vitrola e tirou o arranjo do cabelo. Foi a primeira coisa que ela tirou, das muitas, e ao final restou, diante de Carlos, apenas Evita e seu delicado perfume de rosas, talvez um gelatti.

Anos depois Gardel cantaria aquele momento à meia-luz. A única diferença para a letra da canção é que havia mesmo um gato. Que dormiu por todo o momento, felizmente.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-quinta noite – Pegar-te-ei de quatro, de oito, de quanto mais

Seremos livres [minha cara Tássia] como talvez nunca o sejamos [livres como quem não existe]. Seremos gigolô e protegida em alguma casa de proto-jazz em Nova Orleans em 1919, ou, hoje mesmo, casalzinho tímido de colegas universitários – tímido só até agora.

Melhor – seremos livres e tomaremos carona a rolar pela Europa – não a Torre Eiffel e outras obviedades. Pararemos em Budapeste ou na capital da Letônia e a falta de dinheiro [ou a vontade de aparecer, ou ambos] nos fará oferecer nossos serviços a uma boate underground de náuseas – dessas típicas de Hollywood, sem classe mas com todo mundo bonito e com o dono a falar inglês perfeito.

E faremos [minha cara Tássia, duas da manhã e plateia lotada de caras e louras] o nosso espetáculo, sem temores de quem o suba ao Youtube [não existiremos, lembra? E quem não existe não tem reputações a defender].

No palco [nossas roupas lá no chão após strip a dois] eu te apanharei de quatro, de oito, de onze, de quanto mais, de todas as formas [minha versatilíssima Tássia] nenhuma delas decente, e te dobrarei em todas as curvas de que teu corpo curvilíneo é capaz. Ajoelhar-me-ei na tua frente em confissão, enquanto tu em pé de olhos fechados mirarás o teto de luz escarlate e enterrarás tuas mãos em meus cabelos em sinal de absolvição.

E ao final nos curvaremos aos aplausos e recolheremos os jeans e sairemos dando beijinhos. Para pegar carona no dia seguinte a outra cidade na qual seremos igualmente livres, minha cara Tássia.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-quarta noite – As Diabinhas de Lutero

Luther und die kleine Teufelchen [que pode ser traduzido de maneira razoavelmente precisa porém não menos ridícula como Lutero e as diabinhas] previsivelmente não foi o mais brilhante de todos os panfletos que a Santa Igreja [e seus bajuladores] lançaram contra o monge alemão nos dias que se seguram à pregação de suas 95 Teses contra a Venda de Indulgências em uma Igreja de Wittenberg a 31 de outubro de 1517. Tratou-se porém [e compreensivelmente] de um dos mais populares, até que o moralismo o relegou aos Infernos das bibliotecas [sendo eles as estantes especiais na qual se estocavam os livros indecentes], de onde o grande escritor Apollinaire [também pesquisador do Inferno da Biblioteca de Paris] o resgatou quatro séculos depois.

O panfleto [que tanto tem se sensual quanto de ridículo] retrata [sem novidade nenhuma] que Lutero fora desencaminhado pelo Inimigo para fazer o mal. Este porém [e também sem se esmerar na originalidade] enviou anjinhas caídas [ele próprio sendo um anjo caído, recorde-se] para desencaminhar o até então bom católico do caminho reto e acertado.

A parte cômica do livro [que deveria ser a parte erótica] mostra as garotas a cercar o monge e a trabalhar avidamente com suas bocas e mãos. Isso, a se somar ao fato de que o gordinho Lutero nunca fora exatamente um modelo de beleza, cercou a obra de grande peculiaridade.

E também fez com que Apollinaire a classificasse como livro cômico.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-terceira noite – Antígona, a não-erótica

Na Tragédia grega ninguém faz nada – ou, nada de mais êxtase. Há sangue, punhaladas, olhos arrancados, esfinges que falam (e pior, falam frases idiotas que o dramaturgo e o expectador insistem em levar a sério) mas nada mais. Nada mais de suspiros, palavras in decentes e olhos revirados – que Ésquilo parecia desconhecer que existiam, porém sem as quais não existiria a própria Tragédia, pois sem gente não há Tragédia, e sem essas coisas não haveria gente.

Nem Eurípedes nem Sófocles nem ninguém pensou nas aventuras possivelmente mais livres de uma Jocasta madura porém com o tempero da experiência. Lisístatra talvez – ela dificilmente seria aceita em um convento católico – o que se resume a questão meramente teórica, pois na época inexistiam os conventos católicos. E além disso, Lisístatra é estrela de comédia – o que foge do escopo.

O grande desafio [que nem mesmo a trinca de dramaturgos gregos aceitou encarar] seria transformar uma adolescente da cidade de Tebas filha da melhor família em uma deusa do prazer. Em outras palavras, fazer de Antígona um personagem erótico.

Ou ao menos fazer com que a garota largasse essa sua obsessão com cemitérios, enterros, pais cegos e irmãos mortos e visse que a vida existe e que pode dar muito prazer a dois.

De Ésquilo só sobraram sete tragédias, dos outros não muito mais. Imagine-se uma em que um guapo mancebo levaria Antígona e conseguiria lhe tirar a túnica. Algo pouco provável pois a cara de tragédia grega da moça quebraria o clima.

domingo, 22 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-segunda noite – O Pior Filme Erótico

Ed Wood gravou nas três últimas semanas de 1950 [em um galpão enferrujado no subúrbio oeste de Newark] as trinta ou trinta e uma [nunca se soube ao certo] cenas de um filme licencioso [e essa qualificação pudica se deve ao próprio Ed Wood, o qual, contrariamente ao que diz a fama, era um tanto pudico].

A obra [se é que se pode chamar de obra a um filme do alegado pior cineasta do mundo] ocupou sete rolos de celuloide e somente alguns poucos sortudos [se é que se pode chamar de sortudo a quem o viu] puderam apreciá-lo antes de sumir nas estantes da Comissão pela Decência [a mesma que por décadas regeu os filmes de Hollywood e que se tornou célebre por proibir umbigos].

Influenciado por seus clássicos-ao-inverso de ficção científica [ao inverso por serem exemplos de filmes ruins] a filmagem de Ed Wood [a qual permaneceu sem nome] tinha como protagonista uma venusiana [um tanto ridiculamente] denominada de Vênus, a qual [junto com suas e seus comparsas de planeta] tinha como objetivo a conquista do Planeta Terra através da sedução carnal aos líderes e cidadãos e cidadãs proeminentes do mundo. Como uma criatura verde [que ao tirar o sutiã verde mostrava os seios verdes] poderia seduzir alguém, o filme silencia.

De qualquer forma acha-se que a verba foi cortada não por pudor, mas por insinuar que os líderes podiam ser seduzidos de forma tão reles. O que não deixou de ser um motivo político.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima-primeira noite – Antônio Frederico e Leonídia em alguma alcova no Pelourinho

Da obra duplamente mal denominada Os Amores Secretos de Leonídia somente um exemplar [em estado deplorável] se encontrou em um canto do Sanatório de Salvador em 1931. Compreensível pois se trata de manuscrito.

Duplamente mal denominada: primeiro não é de Amor que se trata, ou ao menos na acepção comum e melosa do termo. Segundo, não se trata de amores mas de um só.

Leonídia amou Antônio Frederico muito antes dele escrever o Navio Negreiro e as pessoas o chamarem um tanto lusitanamente pelo seus sobrenomes de Castro Alves. Um amor fraquinho, não consumado, do qual ela só teve a honra duvidosa de segurar o poeta nos braços enquanto ele partia do mundo.

Enlouqueceu depois, dizem que de saudades do que não aconteceu.

O [anônimo ou anônima] autor desta obra [tanto ficção como projeto de vida] se propôs a escrever o que a jovem deveria ter feito para manter a sanidade.

Começa com a fuga desta do engenho, acompanhada de uma criada, e da sua chegada ao quarto de estudante do poeta no Pelourinho.

E continua descrevendo cada uma das posições, a troca das mesmas, o motivo de cada um dos suspiros, a diferença de um milímetro no diâmetro entre os bicos da jovem, que o detalhista poeta não deixou de apreciar.

E terminava [previsivelmente] com a gravidez da moça, de um filho que daria sentido a sua vida.


Lamentavelmente [diz o autor ou autora com comoventes boas intenções] Leonídia foi uma boa moça, e morreu em um hospício.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Centésima-sexagésima noite – A mulher perfeita de Charles Baudelaire

Charles Baudelaire sonhou com uma mulher perfeita no dia em que o último casebre medieval na praçola em frente à Notre-Dame sucumbiu ao peso de uma bola de ferro. [A velha cidade sumia e a nova não o agradava]. Tomou mais dois goles de absinto, fumou um charuto de dar náuseas e [contrariamente a Vítor Hugo, que inventou uma trama sobre um corcunda na velha catedral] meteu-se a elaborar a perfeição.

Começou [de maneira não só banal como previsível] por pedaços do corpo – mas após encaixar seios e ancas na forma que criava na imaginação deixou para depois, superado por algo mais urgente.

Abandonou os lugares comuns [de que a mulher deveria ser amorosa, ou dedicada, ou saber fritar boas panquecas ou escrever tratados sobre histologia] e dedicou-se ao que o interessava – e que [não por acaso] era o que não interessava ao vulgo.

A mulher perfeita de Charles Baudelaire tinha formas razoáveis e sabia conferir hemistíquios, sabia decorados trechos de Molière e fumava de vez em quando um charuto. Vestia-se de saias plissadas e sabia despi-las com igual elegância [talvez mais ainda] mostrando-se inteira para seu amante [ou não inteira pois a vestia um delicado perfume de cânfora].


E acima de tudo a mulher perfeita de Charles Baudelaire tomava absinto em algum café de esquina com Charles Baudelaire.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-nona noite – A única pintura

A mais bela pintura de Cândido Portinari nunca foi intentada, e se o foi, perdeu-se há décadas.

De fato conta a história [e talvez não minta] que o mestre um dia viu [pela infinitésima-segunda vez] o mundo – e pela vez primeira não o achou injusto nem mau [a opressão capitalista, o trabalho escravo e a tragédia dos imigrantes não lhe tocaram a imaginação ou a retina].

A mão do artista de Brodósqui [mão essa exímia em segurar um preciso pincel embebido em óleo] pela primeira vez acariciou com o pincel a tela, mas não a começar em caras gretadas, marcas de varizes ou rugas à la cânion. A mão deixou-se levar [talvez por lembranças de infância ou anúncios de maiô em alguma revista] e [em lugar das linhas retas do sofrimento] passeou [talvez em delírio] por parábolas e montanhas-russas, e por três horas [dizem] Cândido Portinari ano soube as horas.

Quando [finalmente] afastou-se três passos, viu que do óleo e da tela [e pela primeira vez do óleo e da tela de Portinari] observava-o uma jovem [olhos castanhos e cabelos surpreendentemente ruivos – os cabelos de todo seu corpo]. Ela o olhava, nem oferecida e nem pudica, nua e não supreendentemente feliz.


Não se sabe o que Cândido Portinari pensou de seu primeiro e único encontro com a felicidade. Apenas que a pintura nunca fez parte dos catálogos de leilão da Galeria Bonino.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-oitava noite – Mata Hari, minha cara

Devassidão e Indecência: a história licenciosa e imoral da célebre espiã Mata Hari – é esse o péssimo título do livro [minha caríssima Tássia] e tal livro nunca foi escrito. Se o fosse [minha leitora Tássia] ele o seria por mim.

Tu [é mais que claro] serias Mata Hari – um cobra a se enrolar no corpo em números de strip-tease para oficiais franceses, a tanga de miçangas a ser tirada em câmera lentíssima. E eu seria Jean Marcel [major, bigode louro e planos secretíssimos de guerra no bolso da galocha].

E em troca desses planos [minha espioníssima Mata Hari-Tássia] eu [em completo desafio ao patriotismo, à lealdade e ao bom senso] te deitaria em mesas de bilhar [tu a beijar o pano verde], seria teu liderado [você minha chefe, por cima de mim e de tudo]. Iríamos [juntos, minha forte Tássia] para frente na vida, o que não me impediria de [por vezes] ficar por trás, bem por trás de ti, minha cara Tássia, muito próximo, enquanto tu de olhos fechados gritarias alguma quadra de Molière de trás para diante.

E um dia [é claro] seríamos pegos [como os espiões sempre o são]. Juízes com pele de tartaruga recriminariam nosso desamor pela pátria, nossa desonra e falta de pudor, e iríamos juntos [minha inefêmera Tássia] para a masmorra ou paredão, pois já teríamos vivido a eternidade do momento.

Centésima-quinquagésima-sétima noite – Cinderela, nua

Um manuscrito atribuído a Borges, depois a algum imitador dele, e finalmente a um comitê de falsários homiziado na rua 49 em Manhattan afirma ser o continuador da história clássica, hoje tida como de fadas.

Segundo tal documento [de veracidade contestada mas não sem colorido e algum interesse], os pudicos irmãos Grimm [e é o próprio manuscrito que os designa como pudicos] sabiam muito bem que a história da camponesa que casa com o filho do Rei [ou seja, a história de Cinderela] não acabava com o casamento e o cavalo branco no qual o príncipe a levava para o castelo.

De fato, o tal papel descrevia com detalhes de miniaturista a primeira noite da jovem Cinderela [sendo impensável uma princesa de conto de fadas ter experiência anterior], incluindo até os decibéis dos suspiros do jovem casal, o número e a força das investidas, a sensação do atrito entre as peles nuas e até a nuance da cor dos seios da moça.

Horrorizados, embora já acostumados ao cruel realismo das histórias de camponeses, os irmãos terminaram a história logo quando ela se tornava mais interessante, segundo o manuscrito. E até essa parte foi [previsivelmente] suprimida.

sábado, 14 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-sexta noite – Serás Cleópatra

Hoje [e talvez só hoje] serás Cleópatra. E eu [apenas pelo dia de hoje, ou então mais] serei Júlio César.

Não, não o serei [e nem mesmo Marco Antônio]: não gosto de generais romanos – na verdade nem de generais como um todo. Serei um escravo [o teu escravo]: algum Diomedes louro da Trácia ou Nicômaco amorenado da Numídia. Existirei para servi-te [minha cara Cleópatra em substituição] – e ao fazê-lo, servir-me de ti – um segredo que nós dois saberemos sem o dizer.

E não vestirei aqueles ridículos panos de filme histórico de Hollywood [ou talvez vista, sei lá, apenas para tirá-los depois]. Vou trazer-te uvas [que você comerá com as mãos por cima do rosto, em um daquelas divãs tão ridículos que duvido que os romanos de verdade os utilizassem]. Beijarei teus pés e vou te dar banho [rainhas da antiguidade não tinha vergonha dos escravos, pois, afinal, eram apenas escravos]. Vou ler Catulo ou farei Karoakê dos Beatles para te arrancar do tédio.


E depois vou te defender com minha espada [nada metafórico, é só a arma de verdade contra algum bando de bárbaros da Bitínia]. Ou talvez seja metafórico mesmo, e depois de usá-la colocar-te-ei para dormir.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-quinta noite – Allan apaixonado

Edgar Allan Poe [previsivelmente] apaixonou-se por uma moça numa tela à óleo  pendurada em um quarto de hotel de náuseas em algum subúrbio de Baltimore em uma tempestuosa noite de novembro em 1840 e só essa frase já contém muitos erros: não era uma tela mas uma litogravura; não havia tempestade mas manhã de sol torrando; e não era uma moça mas várias.

A Gravura [a qual ele apurou ser reles imitação de outra, francesa, do tempo de Luís XV, esta por sua vez a cópia de uma cena em uma parede de Pompeia] retratava três jovens a entreter sete cavalheiros [e os cabalísticos números três e sete deram voltas na cabeça de Allan].

Uma delas, na posição dos pôneis, demostrava todo seu potencial amoroso a entreter dois cavalheiros, um em cada ponta de seu jovem corpo. Outra punha literalmente mãos à obra [há sempre pessoas sem medo do trabalho, pensou o contista] em dois companheiros naquele momento de agrado. A terceira [talvez mais conservadora] coloquiava sobre um cavalheiro, outros dois a agradar em respeitosa fila.


Edgar Allan Poe [pela vez única] esqueceu relógios, assassinos venezianos e a Santa Inquisição. Viu-se a si mesmo naquela cena de vida talvez excessiva. Para afastar-se de pensamentos tão comuns escreveu mais um poema sobre corvos.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-quarta noite – A Metafísica do Nada

Fernando percorria a capital em algum monótono anoitecer de 12 de outubro de 1931 [ou 1945 ou 2117, Lisboa é sempre tão parecida, cópia de si mesma que se repete ao longo dos anos como um velho programa que o antivírus não consegue livrar de seu bug]. Saiu do Café A Brasileira e não falou com ninguém. Desceu o Chiado, subiu a Avenida da Liberdade, pareceu-lhe que alguém gritava Viva Salazar mas não virou o rosto. Na Almirante Reis cruzou com três nepaleses e 75 alemãs de mochila e pensou em atalhar pela Antônio Pedro mas desistiu.

Na Alameda Fernando sentou-se ao gramado [o chafariz ao longe com estudantes a trazer de casa o vinho pois é mais barato] e pensou nas janelas, iluminadas ou não, e como a vida era estranha, ou excessivamente simples.

Sorriu a pensar no que ocorria por detrás dos estores e cortinados. Cenas de amor a cinco, talvez. Ou a um. Ou uma. Ou qualquer maluquice, talvez mesmo a do matrimônio. Chicotes ou dores de cabeça, em possibilidade. Quem sou eu, a metafísica se quis intrometer mas ele a enxotou como inseto. Voltou a pensar nos casais. De seis, nove, talvez mais.

Fernando se viu de novo Pessoa só, na Avenida, sentindo-se cercado de libidinagem em cada alcova ou escadaria. Na pastelaria Estrela do Chile pediu três Pastéis de Nata.

Devorou-os a contemplar a velha estátua, no centro da praçola. Concluiu que havia bastante metafísica em não pensar em nada.