terça-feira, 17 de outubro de 2017

Centésima-quinquagésima-nona noite – A única pintura

A mais bela pintura de Cândido Portinari nunca foi intentada, e se o foi, perdeu-se há décadas.

De fato conta a história [e talvez não minta] que o mestre um dia viu [pela infinitésima-segunda vez] o mundo – e pela vez primeira não o achou injusto nem mau [a opressão capitalista, o trabalho escravo e a tragédia dos imigrantes não lhe tocaram a imaginação ou a retina].

A mão do artista de Brodósqui [mão essa exímia em segurar um preciso pincel embebido em óleo] pela primeira vez acariciou com o pincel a tela, mas não a começar em caras gretadas, marcas de varizes ou rugas à la cânion. A mão deixou-se levar [talvez por lembranças de infância ou anúncios de maiô em alguma revista] e [em lugar das linhas retas do sofrimento] passeou [talvez em delírio] por parábolas e montanhas-russas, e por três horas [dizem] Cândido Portinari ano soube as horas.

Quando [finalmente] afastou-se três passos, viu que do óleo e da tela [e pela primeira vez do óleo e da tela de Portinari] observava-o uma jovem [olhos castanhos e cabelos surpreendentemente ruivos – os cabelos de todo seu corpo]. Ela o olhava, nem oferecida e nem pudica, nua e não supreendentemente feliz.


Não se sabe o que Cândido Portinari pensou de seu primeiro e único encontro com a felicidade. Apenas que a pintura nunca fez parte dos catálogos de leilão da Galeria Bonino.

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